sexta-feira, 28 de março de 2014

Climatinê: Vidas ao Vento

por
Corto de Malta

"Essa campina é o lugar onde nos encontramos pela primeira vez."
"Sim. É o mundo dos sonhos."
"Pensei que fosse o inferno."
"Não está muito longe disso."

O diálogo acima ocorre próximo ao fim do longa metragem animado Vidas ao Vento, o Canto do Cisne de Hayao Miyazaki, sua última obra.

O criador de Nausicaa, Totoro, Mononoke e Ashitaka entre tantos outros personagens inesquecíveis decidiu contar a vida de Jiro Horikoshi. Desde criança Jiro sonha em se tornar engenheiro e construir belos aviões, inspirado pelo trabalho do italiano Caproni, o qual sempre encontra quando está sonhando, até mesmo quando está acordado.


Durante o grande Terremoto de Kanto Jiro encontra pela primeira vez a jovem Naoko Saotome, que mais tarde se tornaria a mulher de sua vida, embora ela viva marcada pela descoberta de uma tuberculose. Enquanto isso, Jiro segue seu projeto de vida, passando a construir aviões encomendados pela Marinha Imperial do Japão e acaba criando sua obra prima: o caça Zero, um dos aviões mais destrutivos da Segunda Guerra Mundial.

Miyazaki traça um paralelo entre a vida de Jiro e a próprio história do seu país desde o começo do século, passando pelo terremoto de Kanto, pela Grande Depressão, o interesse em armamentos bélicos, e a ligação política com a Alemanha até a Segunda Guerra Mundial que culminou na devastação total do Japão.



Vidas ao Vento tem causado bastante polêmica. No seu país de origem o filme foi acusado de ser anti patriótico pelas críticas que faz ao país. No resto do mundo eles o acusam de ser condescendente com o papel dos japoneses na guerra, lembrando que Miyazaki se tornou conhecido por seu pacifismo em obras anteriores.

Bem quem leu a entrevista do diretor (veja aqui) notou que ele procurou fazer uma defesa de Jiro Horikoshi, mostrando-o como um homem que queria realizar seu sonho e eximindo-o da responsabilidade do que os outros homens fizeram com esse sonho.


Mas o mais curioso é ver como em nenhum momento Vidas ao Vento procura passar longe dessas questões, por mais que seu protagonista seja obstinado por concretizar seu intento e pareça um alienado dos fatos que o rodeiam. Ao contrário. Os melhores momentos do longa metragem ocorrem quando algum outro personagem interpõe a situação que está ocorrendo...

É assim quando o amigo de Jiro diz que o dinheiro de uma peça da engrenagem do avião que estavam construindo poderia alimentar uma rua inteira de famintos, quando o alemão no chalé das montanhas diz que eles precisam evitar uma guerra que "explodiria" tanto o Japão quanto a Alemanha ou quando seu chefe o questiona por permitir que a esposa permaneça ao lado dele mesmo doente, quando o próprio Jiro estava mais ocupado trabalhando com o Zero.


Essas contradições enriquecem o filme e nos fazem questionar o tempo todo o protagonista e também Miyazaki. Por mais que este último defenda que uma pessoa tem que viver intensamente e que ninguém tem o direito de dizer como ela deve conduzir sua vida ou que não deve se preocupar com coisas que estão além de seus limites, a realidade constantemente beta à porta.

Até mesmo nas cenas lúdicas com Caproni, Jiro é sempre alertado que que por mais belo que seja o seu sonho, ele é amaldiçoado. Acredito que em momentos tão forte assim não há como ter certeza absoluta de nada e próprio Miyazaki no fundo não está completamente seguro do que seria Certo ou o Errado numa situação limite como essa.


Porém, é nítido que esse embate entre a beleza da vida e a violência realidade é algo que vai muito além  do conflito de Jiro e está muito mais presente do que podemos suspeitar. O próprio Vidas ao Vento acaba trazendo essa reflexão enquanto filme.

Afinal, durante a projeção assistimos a um terremoto terrível, incêndios, pobreza, fome, guerra, doença e morte. Tudo vindo do mundo real, baseados em situações que pessoas de verdade viveram ou poderiam ter vivido. E tudo retratado de um jeito bonito, com uma grande riqueza de detalhes e apuro estético. Nós não somos um pouco Jiro Horikoshi também? Não pagamos o preço pra ver algo bonito, não importa quanto sofrimento de outras pessoas isso envolva... já que, afinal, não conhecemos essas pessoas?


Quanta Arte não é feita baseada em tragédias?

Estendendo essa reflexão podemos chegar à trama de Naoko, que se se esforça para "mostrar ao seu amado apenas o seu lado mais bonito." Talvez até mais do que Jiro, ela paga o preço da beleza que é viver a vida intensamente.


O que torna Vidas ao Vento um grande filme é que Miyazaki não foge das consequências dessa escolha, mas também não se arrepende dela. Seja essa a decisão certa ou errada, ele segue investindo nesse caminho. E, assim como é possível que Jiro Horikoshi tenha tido pra ele a mesma influência que a figura idealizada de Caproni tem no protagonista, isso também não o impede de, mesmo com a cabeça nas nuvens, fincar os pés no chão.

O momento em que Naoko cospe sangue no quadro que estava pintando é o mais emblemático do longa metragem.Vidas ao Vento nos mostra que a existência é uma obra de arte esperando para ser criada, e nós somos os artistas... mas também nos mostra que o mundo real, cedo ou tarde, maculará essa arte.



Ou ainda, pra usar a citação de Paul Valéry:

"O vento se ergue. Devemos tentar viver."

Um comentário:

Renver disse...

Interessante essa dualidade da obra

Postar um comentário

Todos os comentários e críticas são bem vindos desde que acompanhados do devido bom senso.