Este texto de O Arroto foi escrito por nosso parceiro Bernardo Brum e aborda um tema muito importante: o Preconceito na cultura pop em geral e em particular a reação de parte do público ao saberem que o Wolverine de uma realidade paralela, onde é conhecido como Coronel James Howlett, é homossexual.
Apesar de eu não ser o mais devoto fã de quadrinhos do
mundo, alguns deles realmente me impactaram durante minha fase de crescimento.
Um deles, claro, foi o X-Men. Não apenas pelo fator descolado de soltar relâmpagos,
disparar laser dos olhos, ter um esqueleto de liga metálica ou controlar o
magnetismo. Mas também, nos quadrinhos e nos desenhos animados produzidos
sobre, o elemento fortíssimo no que tangia ao preconceito: jovens nascidos com
habilidades sobrenaturais e super-humanas, muitas vezes de aparência considerada
bizarra, eram vítimas de discursos preconceituosos e crimes de ódio.
Existiam os que reagiam negativamente ao preconceito,
internalizando a condição de “pária” e adotando um discurso supremacista; mas
existia os que juravam proteger o mundo que os odiava. Alguns até mesmo
trocavam de lado, dependendo das circunstâncias. Isso que tornou X-Men uma das
minhas franquias preferidas: os personagens eram realmente profundos, tinham
dilemas palpáveis e propriedade ao falar sobre como era ser visto pelo resto
como “feio”, “diferente”, “não aceitável” pela maioria. Em matéria de formação
me ensinou, como poucas obras poderiam transmitir através de uma experiência
controlada, os efeitos devastadores da intolerância. Histórias e personagens
cheios de camadas, maravilhosamente bem escritas.
Mais eis que nem todos interpretaram assim, é claro. Hoje,
pra alguns fãs de quadrinhos, a história não tem que ser boa. Não tem que ter
bons personagens, com conflitos dramáticos ambíguos e tridimensionais.
O que importa é que a história tem que ser estrelada por
alguém que se encaixe naquilo que é encarado como normativo. Não importa que
Wolverine seja uma das figuras mais "casca-grossa" e um dos heróis
mais letais, independente da sexualidade. Não. Tem que gostar de mulher, porque
pra esses fãs de quadrinhos, os homossexuais são "frágeis" e
"delicados", quando o único requisito verdadeiro para ser de uma
orientação sexual específica é gostar de alguém do mesmo sexo ou do sexo
oposto.
Para alguns, o herói tem que ser branco anglo-saxão. A
priori, o que faz uma história boa são os conflitos, ações e escolha do seu
herói, não algo natural deles. Mas tornar um herói negro e/ou de ascendência
latina também é "descaracterizar".
Importa mesmo a sexualidade, a cor ou a ascendência de um
herói na hora de superar seus limites, derrotar adversários e proteger os
oprimidos? Por acaso um personagem gay ou latino é "menos capaz" de
salvar o dia?
O que eu admiro no Homem Aranha, por exemplo, é sua
disposição e zelo com outros indivíduos, a sua disposição em impedir crimes,
salvar vidas e cuidar dos entes queridos. Não o fato de ele se chamar
"Parker" ou "Morales". O que eu admiro no Wolverine é a
maturidade que a maioria dos heróis, jovens cheirando a talco, não tem. A
experiência com perdas, superação e sobrevivência que poucos personagens
experimentaram com tanta intensidade. Não o fato dele amar Jean Grey ou
Hercules. Isso é tão secundário que ainda é estranho precisar explicar isso:
Wolverine é um personagem fantástico independente da sua orientação sexual.
Mesmo que não fosse homem, cis ou trans, ainda seria fantástico. Seria um
personagem fantástico se não fosse canadense. Seria fantástico mesmo se não
chamasse Logan. Não é, nem nunca foi, o fato do Wolverine ser hetero que me
despertou admiração por ele.
Só para fazer um paralelo, o que torna o Bill do jogo The
Last of Us um grande personagem? A orientação sexual dele ou o fato dele ser um
sobrevivente nato, com uma personalidade introspectiva e estratégica que
garantiu vinte anos de sobrevivência praticamente solitária em um apocalipse
endêmico? O notável sobre isso, aliás, é sua concepção: o fato de ele desejar
homens ou mulheres não é tratado pelo roteiro do jogo como algo que tornará o
personagem interessante ou não, ou moral ou imoral, mas é antes apenas o desejo
dele.
Porque apesar de achar cômico um personagem como o Deadpool,
estou longe de “admirar” ele, já que sua crueldade, violência e misoginia não
contribuem para o ajuste narrativo do personagem, mas sim reforçar a sua
condição de “inepto” social, incapaz de discernir o que seria um comportamento
respeitoso e compreensivo. Claro que, quando bem escrito, o personagem é uma
fonte inesgotável de humor negro em sua “patetice” truculenta e referências
culturais diversas. Difícil, é claro, que alguém o admire por motivos similares
que admirem o Super Homem, o Batman ou o Aranha. Mesmo assim, é engraçado que
ele tenha muito menos resistência em ser cultuado que alguns personagens
condenados na largada apenas pelo desejo que sentem.
Alguns podem argumentar, é claro, que isso torna a história
“verossimilhante”. Bem, uma história pode até possuir certa conexão com a
realidade – falar sobre política, mídia, sociedade, direitos humanos,
democracia – mas isso pouco afeta os personagens em si. São antes de tudo, não
podemos esquecer, vigilantes de roupa colorida e poderes absurdos, fantásticos
e sobretudo fictícios.
Quer outro exemplo? A “magrofobia” de muitos comentários
quando Gal Gadot foi escolhida para ser a Mulher Maravilha quando grande parte
dos leitores que querem ver os heróis como um “exemplo de masculinidade” e
heroínas como uma figura sensual e nada mais. Então “nada a ver” escolher uma
mulher magra para interpretar uma amazona que deveria ser musculosa (sendo que o que conquistou na eterna e primeira Mulher Maravilha, Lynda Carter, era a
personalidade forte, digna de uma guerreira – não a presença de curvas,
músculos e medidas avantajadas).
Como a mesma Gal Gadot declarou:
“Sou a Mulher Maravilha de um mundo novo. Qualquer um pode comprar seios. E se fôssemos seguir as origens históricas da personagem, deveriam levar em conta que amazonas só tinham um seio.” - fazendo referência ao costume entre as guerreiras que facilitaria o uso de um arco.
Vale também a menção que Bruce Lee, com um porte físico bem
menor que Arnold Schwarzenegger, possuía um treinamento marcial muito mais
aprofundado que o Mr. Olympia. Aliás, o magro astro do kung fu conseguiria
derrubar a maioria de alguns astros truculentos e grandalhões sem fazer muito
esforço.
Ou seja: procuram-se desculpas, mas de tão mal fundamentadas
que são explicadas as necessidades do personagem ser branco, hetero ou magro. Revelam ainda mais uma visão normativa e preconceituosa enraizada: a mulher
como um objeto, o negro como coadjuvante e o homossexual que deve-se evitar
fazer menção – ou de preferência fingir que não existe. Querer que os
quadrinhos voltem aos anos 50 - após vários artistas, de Stan Lee a Alan
Moore e outros criarem histórias de tom progressista e humanitário –
chega a ser uma visão romântica de uma era opressiva, onde a cumplicidade e
afeto de Batman e Robin e a personalidade forte e independente da Princesa
Diana eram condenados pela homofobia delirante...
Então, não entendo e nunca vou entender uma explicação além
do preconceito puro e simples para o fato de se aceitar e cultuar alguns personagens
misóginos e cruéis e só aceitar as heroínas se o “corpo” delas for algo a ser
admirado, mas jamais a personalidade, e a recusa absoluta em admirar um
personagem gay.
3 comentários:
concordo com a maioria do texto, mas o visual "pit bicha" do casal Wolvie e Herc mostra que a intenção (pelo menos do artista) foi mais chocar do que contextualizar a mudança de paradigma.
falou bobagem.
Bom texto, e ótima reflexão.
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