sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Cartas de um Navegante: Panorama do RioFan - Parte 2

por
Corto de Malta
Ontem começou o Festival do Rio. Mas nessa coluna, com um baita atraso (pelo qual eu peço desculpas), vamos terminar aqui a análise de alguns dos filmes que passaram no Festival de Cinema Fantástico do Rio de Janeiro e que, infelizmente, permanecem inéditos nos cinemas brasileiros em sua maioria.


Um Sussurro das Trevas (The Whisperer in Darkness) de Sean Branney


Livremente inspirado num caso real (estranhas aparições supostamente vistas pelos moradores de Vermont após as grandes inundações de 1927) o filme adapta o clássico livro de horror homônimo de H. P. Lovecraft. O filme começa com umdebate do Professor Abel Wilmarth na Universidade de Miskatonic tentando provar a inexistência de vida extraterrestre, cujos indícios estariam sendo vistos na região de Vermont.

Depois, filho do fazendeiro local Henry Akerey procura Wilmarth para mostrar-lhe parte do que seria um cadáver de um destes estranhos seres, encontrado quando as águas baixaram. Segundo Akeney, havia vários deles escondidos na montanhosa região planejando algo sinistro, que pode ser percebido apenas por seu modo de comunicação, como um estranho sibilar. O professor passa a  trocar correspondência com o fazendeiro e seu filho, que desaparece misteriosamente.Wilmarth decide então ir ele mesmo até Vermont averiguar e se depara com uma bizarríssima conspiração envolvendo alienígenas, seitas macabras, túneis dimensionais, cérebros vivendo separados de corpos etc.

Esse filme é belíssimo. Finalmente deram a Lovecraft uma adaptação como merecida: uma obra-prima do terror. Produzido pelo HP Lovecraft Historical Society, entidade que divulga e preserva o trabalho do autor, esse longa-metragem foi, na minha humilde opinião, o melhor filme exibido no RioFan. Ao contrário do trabalho realizado pela associação em Call of Cthulhu, aqui o diretor Sean Branney e o roteirista Andrew Leman optaram por ir além do conto original ao invés de apenas transcreverem o livro.

Auxiliados pelas excelentes intrepretações de todos os atores (e digo: melhores atuações que eu vi num filme do RioFan), a dupla de criadores foi 100% fiel ao espírito da obra Lovecraftiana, conferindo um desenvolvimento psicológico ao protagonista mais forte que a versão do livro, o que deixa o final da história muito mais dramático, além de terem desenrolado todo o terceiro ato de forma inspiradíssima.

Afora alguns pequenos detalhes como a fotografia preto-e-branco que tenta dar um ar retrô, porém destoando de detalhes obviamente tratados no computador como a chuva torrencial e a aparência das criaturas, não se nota que é uma produção feita com pouco dinheiro.

O clima de suspense crescente, a caracterização dos personagens, a conspiração, as revelações, as primeiras aparições dos Mi-Go, as bem sacadas cenas de morte, o clímax no avião, o final implacável e principalmente a quebra de expectativa... tudo é feito de um jeito muito inteligente. Já virou um dos meus filmes de terror favoritos.






Comandante Treholt e Sua Tropa Ninja (Kommandor Treholt e Ninj Troppen) de Thomas Kappelen Malling


Arne Treholt é um personagem real que ficou famoso na Noruega quando foi preso por traição em 1984, ao ser condenado como espião por colaborar com os soviéticos na Guerra Fria. Esse louco filme de Thomas Kappelen Malling reinterpreta esses acontecimentos sob um novo e curioso olhar: Treholt era na realidade líder de uma organização secreta de ninjas super treinados, ligada diretamente ao Rei da Noruega, que visava combater invasores que ameaçassem... o modo de vida norueguês.

O que é saborosíssimo nessa comédia de ação é esse clima de esquerda onde abertamente os maiores vilões são o capitalismo e o imperialismo norte-americanos. E eles tomam o cuidado de disfarçar isso muito cuidadosamente. Por um lado a Tropa Ninja de Treholt é treinada numa ilha isolada da forma mais nosense possível (eu gargalhei na parte do campo de força de Feng Shui), por outro o filme propõe que o Comandante teria um encontro puramente diplomático, ainda que secreto, com os comunistas que é transformado por seus inimigos internos em alta traição. Ou seja, o filme brinda ao exagero e ao mesmo tempo faz uma críica a ele.

A caracterização de época é espetacular, chegando a nos enganar por uns momentos se não estamos assistindo a um filme exploitation dos anos 70. As cenas de ação surreais, a brincadeira com a cultura ninja (sobra até uma zuação aos samurais) e as piadas e frases propositalmente infames são outro show a parte.

O filme até fica meio repetitivo e cansativo num certo momento em que você não tem idéia de pra onde a narrativa está indo... mas o final guarda uma reviravolta tão bem bolada (com ecos de Batman - O Cavaleiro das Trevas) que amarra tudo até mesmo dando um significado insuspeito a frase de filosofia de boteco que pra muitos era a mais inútil de todas: "A verdadeira luta é vencida sem lutar."






A Raça Violenta (The Violente Kind) dos Butcher Brothers


Cody acabou de sair da cadeia e só queria uma noite com a velha gangue, seu melhor amigo, sua prima, sua namorada etc. pra afogar as mágoas e esquecer. Mas os ânimos andavam exaltados, as amizades e ligações não eram as mesmas, sua namorada parecia uma cadela no cio com outro cara e quem escrevia as cartas pra ele na prisão era a meiga irmã mais nova dela. Apesar disso, nada os preparou pro que estava por vir. Nada os preparou para o que rondava a casa durante a noite. Nada os preparou para uma personagem surgindo ensanguentada e possuída por alguma entidade maléfica, que seria a penas a ponta do iceberg de terríveis acontecimentos.

A Raça Violenta é uma interessante atualização do estilo de Horror Cósmico de Lovecraft, mas até descobrirmos isso muita água corre debaixo da ponte. Fiquem de olho nos irmãos Butcher. Os caras são muito bons. Fantástica a forma como conduzem a narrativa, seguram o suspense e quebram nossas expectativas o tempo inteiro na medida certa, desde a primeira sequência, ao insuarem uma tensão sexual entre dois personagens que logo depois decobrimos serem primos.

Mas o que torna esse filme na minha opinião o melhor trabalho de direção que eu vi no RioFan foi como ele passeia por vários gêneros, se sai bem em todos e nunca deixa nada fora do contexto da misteriosa trama que está apresentando. De início parece que veremos uma drama de gangues pelo ponto de vista de Cody, mas o suspense e aparições nas sombras já nos dão a dica do que virá.

Ainda assim os diretores conseguem nos surpreender quanto a identidade da personagem possuída e até o fim guardar segredo da importância dela. A partir daí começa um suspense de cabana básico e bem feito com lampejos d eviolência radical onde os personagens ficam com os nervos a flor da pele sem entender o que diabos está acontecendo ali. Quando parece que a história se encaminhar pra algo relacionado com zumbis, acontece mais uma reviravolta e surge em cena um grupo completamente novo de personagens com atitudes compeltamente diferentes... e com atos ainda mais violentos que os anteriores e consequências inesperadas.

Sem falar da graça toda particular de ver uma gangue dos comportados anos 50 aterrerorizando uma com a cara dos anos 80. No fim, muito pouco se revela e o gancho final (que me lembrou do clássico Vampiros de Almas) pareceu deixar bem claro que haverá uma continuação pra tudo o que vimos em outro longa-metragem. Essa talvez seja o grande ponto fraco da trama. Tudo tem muita cara de primeira parte, de apresentação de uma história muito maior da qual só vislumbramos um pedacinho na cena final.

Acabou que os personagens que morrem não são os mais importantes e os conflitos não se resolvem pra valer. Mas os Butcher realmente tem o mérito de ter me deixar aguardando por essa continuação... se for do do nível de cada reviravolta do filme, vale a pena.






Fatiado (Chop) de Trent Haaga


Fatiado é a história de um cara que ao receber carona de outro na estrada descobre tratar-se de um psicopata que quer um pedido de desculpas por alguma ofensa recebida a qual o protagonista não se recorda. O sujeito então passa a chantageá-lo, o força a matar seu irmão e ameaça sua esposa. Não contente com isso passa a arrancar pedaços de seu corpo. Tudo por sua vingança. Mas nem tudo é o que parece.

Eu não esperava muito de um diretor vindo da produtora Troma (especializada no mais fino trash), mas Fatiado me surpreendeu como o filme mais engraçado do festival. As vezes um tanto violento demais, outras horas meio forçado demais, mas sempre engraçado. Isso porque não dá pra você criar nenhuma grande identificação com ninguém já que todos fazem merda, como o irmão e a mulher do protagonista que tem um caso ou o próprio que aleijou e matou pessoas no passado. E o diretor (e o ator principal também.) sabem disso e cadenciam o filme o tempo inteiro nesse sentido, não se levando a sério em momento algum.

Acho que o mais inteligente na trama é como ela muda de direção toda vez que parece que vai ficar pesada demais (como a revelação sobre o irmão logo no começo). O único problema é que chega uma hora eles não tem mais pra onde ir e tinham que encerrar a história de um jeito clichê e sem graça demais de tão previsível. Mas até lá ótimos risos garantidos até mesmo pra quem não tolera muito esse tipo de humor negro.

Tanto a primeira parte do longa, especialmente o assassino forçando a mulher a confessar pro marido a traição, quanto a última, principalmente a troca de identidades são muito engraçadas. Ah! E eu aprendi uma importante lição com esse filme: Conrad Bain tinha um irmão gêmeo.






O Corredor (The Corridor) de Evan Kelly


Após a morte violenta e misteriosa da mãe, rapaz tem um surto e ataca seus amigos. Tempos depois, ao deixar o hospital psiquiátrico o grupo de amigos decide ajudá-lo indo para o antigo retiro que a mãe mantinha numa cabana na floresta. Porém, é lá que está a fonte de tudo que ocasionou a loucura de mãe e filho anteriormente: uma espécie de corredor dimensional vindo do espaço que afeta as mentes de todos ao redor.

O filme mais fraco que eu vi no RioFan. Tem uma cena de abertura ótima e instigante, mas é pedante, não explica o que tem que explicar, como por exemplo se o tal corredor era a pura fonte do mal ou só transferia a loucura de um pra outro. Também dedica boa parte de seu tempo a desenvolver as relações de amizade só pra elas serem destruídas, o que poderia rende rum impacto muito maior não fosse a impressão que passa de que todos ali são descartáveis.

E o que foi aquele "momento heróico" do final? Totalmente inadequado e forçado pra caramba. O filme todo pareceu mais uma tentativa vã de criar uma versão moderna do estilo de terror de Lovecraft, misturado com O Iluminado. Vi idéias do conceito do autor mais bem exploradas em Um Sussurro nas Trevas e A Raça Violenta. O Corredor não serve nem como drama, nem como suspense e muito menos como Horror Cósmico.






A Porta (Die Tur) de Anno Saul


Um artista comete um erro terrível que custa a vida sua filha. Desesperado e sem rumo na vida, tenta o suicídio, mas é salvo pelo melhor amigo. Na mesma noite ele se depara com uma misteriosa passagem que o leva cinco anos de volta ao passado. Lá ele consegue milagrosamente consertar seu erro... mas a seguir comete outro que pode tornar tudo ainda pior.

Não esperava nada desse filme alemão e foi o que mais me surpreendeu. Ele na verdade talvez não trate de viagem no tempo e sim de universos paralelos. Só isso poderia explicar o bizarro evento que ocorre com o protagonista e o faz ficar no passado. Isso não é ficção científica. É realismo fantástico. Não é De Volta Para o Futuro.

É no início um conto dramático sobre um homem que quer recuperar sua família, vira um suspense imprevisível sobre estar no lugar certo na hora errada e culmina virando uma intrincada trama de conspiraçãocom um clímax cheio de ação. Mas ainda assim jamais perde o foco.

O filme tem o mérito de ir direto ao ponto desde o começo, fazendo assim com que fiquemos tão desnorteados quanto o personagem principal com cada revoravolta que acontece e conforme o filme vai crescendo temos uma visão amplificada da situação através de vários outros personagens que ganham importância inesperada no enredo, o qual ganha uma dimensão mais valiosa conforme vão surgindo conflitos éticos cada vez mais difíceis de solucionar.

A Porta também faz um ótimo trabalho no que que tange a relação entre pai e filha, pois sem isso não haveria como acreditarmos em boa parte do que vemos desenrolar ali. Mas sua maior qualidade é partir de uma história intimista para chegar aos poucos a questionamentos perturbadores sobre nós e toda a humanidade como: Até que ponto nossos entes queridos são mais importante que os demais? Mais que isso: Até que ponto nós, enquanto indivíduos, somos mais importantes do que aquilo que representamos (mesmo que num passado) para quem amamos?



Enfim, apesar da demora estes filmes valiam a pena serem comentados. Vejamos agora o que o Festival do Rio nos reserva. Aguardem mais postagens aqui no Blog.


Enfim, apesar da demora estes filmes valiam a pena serem comentados. Vejamos agora o que o Festival do Rio nos reserva. Aguardem mais postagens aqui no Blog.

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