Tigre! Tigre! Brilho, brasa
Que a furna noturna abrasa,
Que olho ou mão imortal armaria
Tua feroz simetria?
Reza a lenda que os figurões da Marvel estavam um belo dia numa adega, colhendo os louros do sucesso da editora quando o editor chefe Joe Quesada questionou que história ainda não tivesse sido contada no Universo dos personagens bolado por Stan Lee. Foi quando Paul Jenkins disse: a origem de Wolverine. Independente dessa história, que eu li a muito tempo numa Wizard da vida, ser autêntica ou não, o que importa é que a Marvel decidiu explicar a verdadeira gênese do mais furioso dos X-Men.
Wolverine foi criado em 1974 pelo roteirista Lein Wein e o desenhista Herb Trimble (baseado em rascunhos de John Romitha Sr.) como um agente canadense do Departamento H e membro da Tropa Alfa que se tornava adversário para o Hulk. Tempos depois o personagem foi recrutado por Charles Xavier para a nova formação dos X-Men, alcançando uma fama meteórica. Desde então o assim chamado Logan entrou para o rol dos personagens arredios e misteriosos com a vida envolta em enigmas, o que garantia grande parte de seu charme.
A partir daí uma série de autores procuraram indícios que jogassem luz sobre o passado do baixinho invocado, mesmo que o próprio tivesse que conviver constantemente com uma conveniente amnésia, que o impedia de ter certeza sobre a maioria dos fatos relativos a ele. O poder mutante de cura de Wolverine possibilitou a idéia de envelhecimento retardado jogando os primeiros dias de sua vida pra fins do século XIX, começo do XX, tornando o que existe entre sua origem e os dias atuais um dos passados secretos mais intrincados já elaborados pra um personagem na história da ficção.
E com o correr dos anos a coisa passou do limite do ridículo com os famigerados implantes de memória, colocando em xeque até o pouco que foi revelado. Porém, existem duas histórias basilares sobre a vida pregressa do mutante: Arma X e Origem.
A primeira, escrita e desenhada por Barry Windsor-Smith, mostra através de enevoadas lembranças como Logan foi cobaia do Projeto Arma X, uma organização secreta do governo canadense e teve o adamantium enxertado em seu esqueleto. A segunda, escrita por Paul Jenkins e desenhada por Andy Kubert, é o testemunho de uma jovem de cabelos vermelhos chamada Rose, que viveu no Canadá no fim do século XIX.
Origem é dividida claramente em duas partes. Uma se passa em Alberta e outra no Yukon, ambas localidades do Canadá. No início da trama a então pobre órfã Rose vai trabalhar na mansão da Família Howlett para fazer companhia ao filho doente de John Howlett, o frágil James. A mãe de James, Elizabeth, vive reclusa no quarto após uma estadia num sanatório devido a um evento do passado mantido em segredo, que envolve o filho mais velho do casal, o qual teria morrido tragicamente.
O pai de John é um velho que aparece de vez em quando para azucrinar o filho, indignado por este ser tão gentil com o neto e tão cordial com os empregados, que por sua vez adoram o patrão, com exceção do jardineiro, um homem rude chamado Logan... que é a cara do Wolverine. Logan detesta John de forma irracional por achar que ele trata os outros bem porque se julga melhor, mas desconta mesmo sua frustração é na bebida e em surras constantes no seu filho, um garoto conhecido apenas como Cão. Desde a primeira vez que vê Cão, Rose pressente que ele lhe causará problemas.
Em que céu se foi forjar
O fogo do teu olhar?
Em que asas veio a chama?
Que mão colheu esta flama?
Com um estilo inicial que lembra o clássico infantil O Jardim Secreto a história acompanha a infância de Rose, Cão e James como três crianças normais brincando nos arredores da mansão, mesmo com o mundo ao seu redor gritando-lhes o quanto são diferentes. Enquanto James é um menino de saúde extremamente frágil e cercado de cuidados, Cão é uma criança pobre e maltratada, marcada por viver à sombra de toda a riqueza da Família Howlett e alimentada pela inveja do pai. Mesmo assim, Rose nota o afeto que os dois tem um pelo outro, como quando Cão salva a vida de James quando ele cai no rio, e James percebe que Cão nutre uma paixão secreta por Rose.
Com o tempo passando e a adolescência chegando Rose e James são afastados de Cão pelos adultos e vemos que a cobiça de Logan pelas posses de John não se limita a bens materiais ao testemunharmos suspeitos olhares que Elizabeth troca com o jardineiro de sua janela. Enquanto Logan já não esconde de ninguém ao redor o que pensa do patrão e atormenta o seu cada vez mais solitário e arredio filho, o avô de James aumenta a pressão para que o neto assuma logo responsabilidades com os negócios. Mas quanto mais o avô faz o pai ceder, mais James se isola dentro de si mesmo.
Rose observa que a Mansão Howlett está prestes a explodir, mas ironicamente é ela quem acende o estopim, ao esquecer todas as recomendações da governanta e entrar desavisadamente no quarto de Elizabeth, flagrando as enormes cicatrizes que a mulher de John tem no corpo, como se tivesse sido vítima do ataque de um animal.
Confrontada com a fúria de sua patroa, Rose corre esbaforida para fora da residência, onde tem um encontro inesperado com Cão que, julgando que a garota veio vê-lo, procura agarrá-la à força. Passeando com seu cachorro, James os vê e, mesmo ameaçado pelo filho do jardineiro, corre para avisar o pai enquanto a ruiva se desvencilha de seu agressor. Este fato faz com que John dê um ultimato a Logan quanto ao filho, o que faz Cão se vingar de seu outrora amigo James, julgando que este, além de já ter tudo, quer lhe tirar Rose. James é defendido por seu cachorro, que é morto friamente pelo filho do jardineiro perante os olhos assustados do dono. Enfurecido, John Howlett escorraça pai e filho de sua propriedade, enquanto o velho Howlett o acusa de sempre ter sido mole demais com os criados.
Sem nada mais a perder, Logan e seu filho invadem a mansão armados durante a noite, matam alguns empregados e tomam Rose de refém para levá-los até o quarto dos Howlett, onde o jardineiro pretende fugir levando Elizabeth, por quem evidentemente é apaixonado. Cão persuade Rose a ajudá-los para seu pai não matá-la e, uma vez lá, Elizabeth tenta convencer Logan da loucura que está fazendo quando John aparece e confronta o perturbado empregado.
Nesse momento, James surge e Logan, surpreso, acaba disparando e matando John diante do horrorizado garoto, que se lança em prantos sobre o cadáver do pai. Cão manda Rose fazer James se calar, mas ele, descontrolado, tem um acesso de fúria, agride Cão no rosto, cegando-o, e fere Logan mortalmente. Rose e Elizabeth, sem entender nada, assistem apavoradas... ao jovem James Howlett berrar como um animal selvagem enquanto garras feitas de osso saem pelas suas mãos!
Que força fez retorcer
Em nervos todo o teu ser?
E o som do teu coração...
De aço que cor, que ação?
Aqui cabe uma observação. Até então tudo levava a crer que Cão era Wolverine. O fato de ser na verdade James, numa grande ousadia narrativa de Paul Jenkins, sugere claramente que ele é filho de Logan em vez de John. Afinal sua mãe obviamente tinha caso com o jardineiro, com quem James ficaria parecidíssimo ao crescer. O que significa que os inimigos de Wolverine tinham razão quando o chamavam de filho da puta. Porém, a Marvel até hoje considera John oficialmente como o pai de Wolverine, mesmo que até na adaptação pro cinema tenha sido dito o contrário. Vai entender!
Como Cão foi o único que ficou no cenário da tragédia ele é interrogado e joga a culpa de tudo em Rose. Devido a isso esta não consegue abrigo com seus parentes na cidade e acaba tendo que retornar com James à mansão para falar com o avô dele. O velho, já nervoso pela morte do filho, ao ver as garras rejeita o neto como uma aberração tal qual era seu irmão mais velho.
Embora nunca diga claramente Origem dá a entender que foi esse irmão, dado como morto, quem feriu Elizabeth, enlouquecendo-a. O velho dá um dinheiro pra Rose e James irem pra bem longe e se esconderem e diz que não tem mais nenhum herdeiro.
Os dois conseguem transporte e vão parar no Yukon, região mineradora de vida muito dura. Quem é fã de HQs Disney conhece bem a região como o lugar aonde o Tio Patinhas, também ainda jovem, ficou rico, começando efetivamente a juntar toda a sua imensa fortuna, como narrado em A Saga do Tio Patinhas do cartunista Don Rosa. Será que por acaso Wolverine cruzou com o velho pato muquirana alguma vez? hehehe!!!
Como as garras são retráteis, as mãos de James já haviam voltado ao normal e para mantê-lo incógnito Rose diz que ele é seu primo e seu nome é... Logan. James inicialmente não se adapta ao trabalho pesado, especialmente por ser constantemente atormentado pelo cozinheiro Cuca, mas com ajuda do chefe dos mineiros ele começa a se integrar e achar seu lugar. Principalmente quando, por puro instinto, o rapaz se junta a uma matilha de lobos, que o acolhe com naturalidade, caçando e uivando durante a noite. Rose desconfia dessas saídas noturnas dele, mas nada comenta.
Seu bom trabalho nas minas lhe garante o apelido de Carcajú... ou Wolverine. O jovem não lembra direito da tragéda da Mansão Howlett, no que pode ser considerada uma amnésia causada por seu fator de cura para aliviá-lo do sofrimento. Toda a vez que Rose tenta tocar no assunto ele se esquiva, o que atormenta a ruiva.
Teu cérebro, quem o malha? Que martelo?
Que fornalha o moldou?
Que mão, que garra..
Seu terror mortal amarra?
Porém, o agora chamado Logan, afogado em seus traumas pessoais, é incapaz de uma interação social mais intensa com ela, que por sua vez acaba cedendo às investidas românticas do chefe da mina, fazendo com que James se torne mais distante. Questionando-o sobre sua repentina frieza ele joga na cara dela que o seu então rival lhe ensinara algo que agora ele descobrira ser verdade: que cada pessoa no mundo é sozinha e deve se importar primeiro consigo mesmo.
Em Alberta, o velho Howlett, à beira da morte, se arrepende por ter seguido exatamente esse conselho durante grande parte de sua vida e pede a um homem para que encontre seu neto para se redimir com ele. O homem, que tem o rosto marcado, lhe garante que seguirá o rastro de seu herdeiro... como um Cão.
Enquanto isso, no Yukon, Logan tem sua primeira demonstração de bravura heróica, que tanto o marcaria no futuro, ao arriscar a vida para salvar uma criança do soterramento de uma das minas causado por Cuca, justamente por inveja de Logan. Este não perdoa o gordão ao vê-lo saqueando os pertences das vítimas e aproveita pra ir à forra das surras que levou dele. Mas quando corre pra contar pra Rose ele a encontra nos braços do outro.
Rose e o chefe da mina decidem se casar e ir embora do Yukon (afinal perceberam que só o Tio Patinhas mesmo consegue ficar rico minerando naquele fim de mundo). Pra juntar dinheiro, ele se arrisca lutando numa jaula onde "dois homens entram e um sai" (já dizia a Tina Turner). Paul Jenkins aproveitou essa velha estrutura de torneio pra finalmente mostrar do que James/Logan/Wolverine é capaz, pois é lógico que ele também vai lutar na jaula. Infelizmente as lutas acabam sendo curtas, não dando muitas oportunidades, nem páginas, para Andy Kubert registrar a fúria do baixinho, que o faria famoso mais tarde, e acentuando a sensação abrupta que fica no final da história toda.
Um estranho assassino que estava em busca de Logan observa as lutas e chega a dar um incentivo financeiro à Cuca, que só serve pro gordo levar mais uma surra, assim como o chefe da mina. Mas, por amor à Rose, Logan permite que este o vença, recolha o dinheiro da aposta e parta com ela. Só que a ruiva não aceita ir sem ele e vai atrás de Logan. Antes que ela o encontre, no entanto, o estranho misterioso chega primeiro e aborda o futuro X-Men dizendo: "Howlett! James Howlett! Você roubou meu nome!"
Quando as lanças das estrelas cortaram os céus
Ao vê-las, quem as fez sorriu talvez?
Quem fez a ovelha te fez?
Em meio a um combate violento com Cão, James recobra a memória momentaneamente, recordando como seu pai (no caso John Howlett) morreu assassinado pelo pai de Cão (no caso Thomas Logan... que também pode ser pai de James... ô, rolo!). O caso é que, devido às suas confusas lembranças, James até então pensava que tinha matado John e por isso não permitia a Rose tocar no assunto. Quando esta aparece em meio à multidão que cerca a luta testemunha James prestes a encravar as garras no corpo de Cão e tenta impedir... e então James acidentalmente transpassa Rose com suas garras...
Antes de morrer ela lamenta não ter insistido em contar-lhe sobre a tragédia na mansão. Ironicamente agora o pobre James (que nunca mais usará esse nome) tem motivos reais pra se sentir culpado por matar alguém que amava... ainda que seu poder mutante de cura o impeça de lembrar disso também.
Origem termina melancolicamente, com Cuca saqueando as coisas de James e Rose e atirando o diário dela contendo todos os fatos narrados na minissérie no fogo, enquanto James se embrenha de vez floresta adentro ladeado pela matilha de lobos, ignorando os chamados do chefe da mina pra que ele voltasse, e falando que o que disse anteriormente estava errado. Ninguém podia viver sozinho.
A segunda parte de Origem não é tão boa quanto a primeira, mas ainda é boa. A sucessão de coisas deixadas no ar como a identidade do verdadeiro pai de Wolverine, o destino de seu irmão mais velho que nunca aparece e a possibilidade de Cão ser o Dentes-De-Sabre chegam a incomodar e pra mim parecem mais manobras do editor Joe Quesada (que deu seus pitacos a ponto de ser creditado como co-roteirista) já pensando em revelar esses e outros segredos em alguma continuação da minissérie.
Essa continuação veio na forma de uma série mensal que não é escrita por Paul Jenkins e que boa parte dos fãs considera puro caça níquel, mas que já vale por mostrar Wolverine finalmente se lembrando de todo o seu passado.
Jenkins acabou aproveitando em Wolverine - O Fim (uma série de especiais da Marvel que mostram uma suposta última história de cada um de seus personagens) para mostrar um velho Logan encontrando finalmente seu irmão desaparecido (não o Cão), um mutante com poderes similares aos dele, que lhe propõe dominarem o mundo juntos. Óbvio que isso leva a um confronto e até Dentes-de-Sabre e Rose são citados no meio da história, que também não fez muito sucesso, embora eu particularmente tenha gostado.
Já o Origem original (sim, eu sei que isso é um trocadilho) foi um grande sucesso. Jenkins teve um mérito de criar uma trama que é praticamente um romance gráfico, sem nunca apelar pro romantismo em si. No entanto gerou polêmica com alguns fãs de Wolverine porque em Arma X é dito que as garras de Logan saíram pela primeira vez quando o adamantium foi enxertado em seu corpo e que Origem desmentiria Arma X. Oras, mas a Marvel já tinha desmentido esse fato em particular de Arma X (e não a história toda lógico!) a muito tempo quando Magneto arrancou o adamantium do corpo de Wolverine e ele passou a atuar com garras de osso... o que por sua vez também desmentia outras histórias da Marvel que diziam que as garras não eram parte da mutação.
Enfim, o que importa é que Origem ficou à margem dessa polêmica, apenas procurou seguir o que era tido como verdade na época em que foi feita, se esforçando pra juntar as pontas soltas do complicadíssimo passado do personagem... que nesse quesito só encontra rivais na Xena, A Princesa Guerreira e no Esteban da novela Kubanakan.
Origem só não é perfeita por deixar muitos espaços em branco que depois acabaram não sendo devidamente preenchidos, além de não conseguir se fechar completamente em si como trama. Se, por exemplo, a revelação de quem era Wolverine no meio do relato dos diários de Rose foi fantástica, o clímax com a morte de Rose soa meio fora de lugar pois James tinha acabado de se livrar da culpa pela morte do pai... e se pensarmos que Thomas Logan era seu verdadeiro pai, o crime de parricídio nunca deixou de existir.
Enfim, um enredo rico em nuances psicológicas e caracterizações de personagens (como Cão, Elizabeth, Cuca, Rose e o próprio James Howlett/Logan/Wolverine), mas complicado por excessos e pontas soltas. Ainda assim, nada que justifique o fato de que, no longa metragem X-Men Origens: Wolverine, TODA esta história seja resumida a cinco minutos do começo do filme!
Um momento em particular da minissérie merece ser lembrado por uma rara combinação de arte e beleza selvagem: enquanto James corre pela noite com os lobos no belo traço de Andy Kubert, Rose lê o poema O Tigre de William Blake, o qual ilustra este texto.
Tigre! Tigre! Brilho, brasa
Que a furna noturna abrasa,
Que olho ou mão imortal armaria
Tua feroz simetria?
5 comentários:
Afinal sua mãe obviamente tinha caso com o jardineiro, com quem James ficaria parecidíssimo ao crescer. O que significa que os inimigos de Wolverine tinham razão quando o chamavam de filho da puta.
HAUAHAUAHAUAHUAHAUAJAUAHAUAHAUAHAUHUAHAUAHAUAHAUAJHAU
Quando o velho morre e pede pra acharem o james...quem vai atrás do James é o Logan (original) e o Cão?
E qual dos dois tinha ainda a cicatriz no rosto, o Cão? Mas se ele é o Dentes de Sabre não devia ficar com cicatrizes.
Parece que segundo a Marvel, Cão e Dente de Sabre são pessoas diferentes.
Foi o Cão quem ficou o rosto marcado pelo primeiro ataque do Wolverine e anos depois foi até o Yukon a mando do velho. O pai dele morreu atravessado pelas garras do James.
Essa seria a lógica mesmo.
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