sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Ataque Terrorista à Revista Charlie Hebdo... Uma Reflexão

por
Corto de Malta
 

Dia 7 de janeiro de 2015 o jornal satírico francês Charlie Hebdo na França foi alvo de um ataque de terroristas armados. Doze pessoas morreram.

Entre as vítimas do massacre estavam célebres cartunistas como o editor chefe do jornal, Stéphane Charbonnier, o Charb, Jean Cabu, Bernard Velkhac, o Tignous, e George Wolinski, que influenciou quase todos os grandes chargistas do Brasil e do mundo. A motivação teriam sido charges que Charlie Hebdo fazia sobre o Profeta Maomé, que despertaram a fúria de grupos fundamentalistas islâmicos. Alguns desses grupos já haviam jurado os artistas de morte e anos atrás explodiram uma bomba na sede da Charlie Hebdo.

O atentado traz a tona uma série de questões políticos e sociais e mais uma vez alerta o mundo de que a Europa é um vulcão de culturas em conflito prestes a entrar em erupção. Muitas questões tem sido levantadas de que se trata de um atentado a liberdade de expressão por parte dos fundamentalistas e a frase "Je Sui Charlie" ("Eu Sou Charlie") virou uma espécie de bandeira para homenagear as vítimas.


Mas como lembrou Luis Fernando Veríssimo [leia aqui], os chargistas podem ter se tornado mártires de uma causa contrária a qual eles sempre lutaram em vida. Os artífices da Charlie Hebdo são todos de Esquerda, diria até que de Extrema Esquerda. George Wolinski, por exemplo, declarou que em sua visão só existia humor de Esquerda. Seus principais inimigos sempre foram os Extremistas de Direita nacionalistas e xenófobos franceses. Mas já a algum tempo eles passaram a ser inimigos também dos fundamentalistas islâmicos. Acontece que agora, o primeiro grupo tem utilizado a tragédia para fortalecer suas posições políticas.

Entender os papéis de Esquerda e Direita na Geopolítica contemporânea assim como o papel das Religiões é fundamental para compreensão e administração desses conflitos. Embora o ataque aparentemente não tivesse motivações políticas os seus mandantes do grupo Al Qaeda tinham.

Muitas pessoas não entendem quando você diz que grupos como a Al Qaeda e o Estado Islâmico são de extrema direita e são faces da mesma moeda dos nacionalistas europeus, já que ambos são inimigos. Ou seja, mesmo sendo de culturas diferentes estão dentro do mesmo espectro político. Isso porque ambos são de Direita extrema, mas dentro de culturas diferentes. Aqui no Ocidente a Extrema Direita, em geral, é ligada a cristãos e judeus, no Oriente é ligada aos muçulmanos.



Além da religião, existe a característica do nacionalismo que é comum a todos os que são considerados de Extrema Direita. Então é óbvio que o patriota de um lugar pode se estranhar com o patriota de outro caso ambas as nações estejam em conflito, e isso ocorre não por suas diferenças, mas por suas semelhanças como indivíduos.

Quase todos os especialistas apontam um fenômeno de retroalimentação entre esses dois lados. Agora, por exemplo, os xenófobos nacionalistas ganharam a arma perfeita para atacarem imigrantes e seus descendentes, além de muçulmanos em geral. Os muçulmanos fanáticos, por outro lado, usam esse tipo de medida restritiva, injusta e preconceituosa como combustível para atrair cada vez mais adeptos para sua causa que só consegue enxergar violência e morte de inocentes como "solução". Ambos são intolerantes um ao outro porque um acha que o outro é errado e vice-versa, mas ao mesmo tempo não conseguem existir um sem o outro...

Essa tese de interdependência vira certeza quando confrontado com dados concretos, como os EUA terem armado o Estado Islâmico durante a guerra civil na Síria contra antes deste se voltar contra ele, conforme revelou o Wikileaks (veja aqui).


Tudo isso é ainda mais irônico quando pensamos que uma das vítimas dos terroristas do Massacre do Charlie Hebdo foi um policial islâmico e que seu irmão deu uma declaração emocionada na imprensa alertando as pessoas de que os fundamentalistas eram "falsos muçulmanos". [clique aqui para ler]

Os dois lados da Extrema Direita permanecem nesse jogo de empurra cada vez mais barra pesada. O que outros especialistas acreditam também é que isto pode ser parte de um plano mais sofisticado dos líderes da Al Qaeda e do Estado Islâmico, como o Laerte bem citou nessa entrevista. Os líderes desses grupos não tem poder estatal sobre os países de maioria islâmica e por isso a melhor estratégia para eles iniciarem uma guerra contra o ocidente seria forçar o ocidente a começá-la.

A esperança dos herdeiros da causa de Osama Bin Laden seria forçar os sucessores de George Bush a enxergarem os terroristas como uma ameaça ao seu mundo para justificar assim que eles invadam os países islâmicos do Oriente Médio. Sim, os fundamentalistas QUEREM que os Ocidentais invadam seus países. Isto enfraqueceria as autoridades locais e faria a maioria do povo se unir a eles contra uma grande ameaça comum dando início assim a sua tão almejada guerra santa.


Que na verdade não é uma guerra santa como quer o oriente nem uma guerra ao terror como alega o ocidente. É, antes de tudo, uma guerra por petróleo

Mas como a Esquerda - onde se encontrariam os humoristas da Charlie Hebdo - se encaixa nisso?  Tradicionalmente a tradicionalmente não é ligada a religiões, pelo contrário até. Charlie Hebdo fazia charges que também satirizam outras religiões, porém, não dá pra negar que as hostilidades de parte a parte fizeram com que fundamentalistas islâmicos se tornassem um alvo maior.

No entanto, como lembrou Paulo Moreira Leite [veja aqui], esse desnivelamento do tratamento pode ter chegado a um nível estranho e estranhamente os cartunistas podem ter feito o jogo da extrema direita ocidental que diziam combater. Vários intelectuais franceses e de Esquerda tem assumido uma postura próxima à Direita nos últimos tempos com o agravamento da questão Israel/Palestina. De fato, pode-se dizer que a Extrema Esquerda tem batido cabeça diante da complexa situação e também tem se dividido em duas.


De um lado a Extrema Esquerda que é simpática a anos aos movimentos contra a invasão do Oriente Médio e que muitas vezes não faz distinção entre o Hamas e a Al Qaeda, por exemplo, unicamente porque ambos se colocam na linha de frente contra a política imperialista das grandes potências do Ocidente, que seria o principal inimigo. Ainda que seja, o fato é que mesmo sabendo das ligações estratégicas com os norte americanos e mesmo sabendo que esses grupos são financiados e lideradas por homens ricos da região (Bin Laden é um exemplo) e lideradas por fanáticos religiosos ultraconservadores, muitos da Estrema Esquerda Ocidental ainda enxergam tais grupos com bons olhos.

Evidentemente é um equívoco que não pode funcionar nem a curto prazo. Ainda assim alguns setores de Extrema Esquerda no Brasil apoiaram abertamente a guerra civil na Síria, a Primavera Árabe, o golpe na Ucrânia, entre outras revoltas pelo mundo patrocinadas pela CIA e por ricos capitalistas do Ocidente achando que que poderia aplicar a esses acasos apenas a velha leitura bruta de luta de classes. Alguns estariam até tentando promover na internet boatos de que o Charlie Hebdo era um panfleto racista para persuadir o público não francês. [leia aqui].

Não é coincidência que essas manifestações de apoio encontrem eco também setores conservadores da nossa sociedade e entre despolitizados, os famigerados indivíduos que apregoam "não sou de direita nem de esquerda, mas estou do lado do povo contra tudo isso que tá aí".



Por outro lado, existe também a Extrema Esquerda que é totalmente favorável a liberdade de expressão sem ressalvas. Composta principalmente de artistas e intelectuais, ficaram horrorizados e nitidamente tiveram uma empatia maior com as vítimas de Charlie Hebdo. Neste grupo estão também ateus radicais, que pregam que não se deve poupar religiões de serem satirizadas sob pena disso atrapalhar o debate de pautas progressistas.

E é verdade. Religiões são muitas vezes machistas, por exemplo, ou estimulam tal comportamento. Daí vem a ideia do "Eu sou Charlie" ("Je Suis Charlie"). De que estamos todos unidos diante da comoção por um em defesa irrestrita da liberdade de expressão. Mas na prática isso é uma meia verdade muito perigosa.

Sempre que eu ouço alguém vindo com esse papo de "Bem Maior", infelizmente o que se segue depois é quase sempre o tal do "Mal Necessário". E é aí que tudo degringola.



Poucos dias depois do atentado o humorista Dieudonné M'bala M'bala foi preso na França acusado de apologia ao terrorismo. Em sua página no Facebook ele teria declarado:

 "Saibam que nesta noite, no que me diz respeito, sinto-me Charlie Coulibaly."
Foi uma referência a Amedy Coulibaly, que é o nome de um dos terroristas, que no dia seguinte ao atentado do Charlie Hebdo matou quatro pessoas num mercado judaico e foi morto pela polícia. Não durou nem uma semana a farsa da liberdade de expressão. Agora, para coroar de vez a cinzenta situação: Dieudonné é nacionalista, antissemita... e de Extrema Direita. Na prática, porém, isso acaba tornando-se irrelevante, pois mais uma vez um extremismo alimenta outro. Por mais que se possa acusar Dieudonnéde de utilizar humor para propagar ódio, nada do que se diga sobre ele não poderia também ser aplicado ao Charlie Hebdo. A atitude das autoridades francesas foi flagrantemente antiética.

Em entrevista a BBC o especialista em Islã Oliver Roy apontou o risco causado por esta ação:

"Qual mensagem será passada com a prisão de Dieudonné aos jovens das periferias? Eles vão entender que a liberdade de expressão só vale para alguns na França e não para todos. A liberdade de expressão é sagrada e para todos menos para Dieudonné. É preciso se voltar para a cultura dos jovens e discutir os questionamentos que eles têm em vez de fazer moralismo, que nunca funcionou".



Esse é o ponto central da questão. O tratamento diferenciado e preconceituoso dado a população não branca que cada vez mais ocupa a Europa. São os filhos dos que imigraram pra lá no Século XX vindos da região do Oriente Médio e redondezas.

Um outro fenômeno apontado por especialistas é que muitos destes jovens fizeram o caminho inverso dos pais e avós, ou seja, saíram da Europa, de países como a França e a Bélgica e foram se alistar em grupos extremistas do Oriente Médio. Isto teria ocorrido especialmente durante a invasão do Iraque.

Desta forma, essas pessoas de Esquerda do Ocidente, ao defenderem "irrestritamente" da liberdade de expressão e da crítica as religiões estariam apenas fazendo o jogo sujo da Extrema Direita Nacionalista, que vai tratar de usar os ecos dessas vozes pelo mundo a seu favor: vão calar os artistas que eles quiserem e criticar as religiões que eles acharem adequadas pra depois entrarem no meio de manifestações por "liberdade de expressão" e "crítica ao fanatismo" genéricas quando for conveniente a suas políticas opressoras. Quanto mais se despolitizar o assunto com reducionismos tolos mais os extremistas de Oriente e Ocidente sairão na vanguarda em seu plano de criar uma grande guerra.



Sim, por mais que soe contraditório, mas manifestações pela paz como aquela que ocorreu em Paris dias após o atentado - e que estava repleta de líderes mundiais acusados de crimes contra a Humanidade - pode ser o caminho mais curto pra uma guerra. Por isso a esquerda em geral deve se acautelar de seu próprio Extremismo. Tomar partido de qualquer lado neste momento é tomar o partido do lado errado.

O filósofo de Esquerda Slavoj Zizek tem um pensamento relevante sobre este grupo de fundamentalistas, onde aponta que complexo de inferioridade deles [leia aqui]. Segundo ele, não adiantaria aos indivíduos de Esquerda simpáticos a sua situação lhes mostrar que não acham superiores a eles só alimentaria sua loucura, em pensar o oposto:

 "O quão frágil não tem de ser a crença de um muçulmano para que ele se sinta ameaçado por uma caricatura besta em um semanário satírico?"  



Ou seja, na verdade eles são pessoas enfraquecidas em suas convicções religiosas. O problema desta linha de raciocínio é que ela não é abrangente o suficiente e por isso mesmo é perigosa. Não pode explicar todos os casos de adesão à causa do fundamentalismo, especialmente os ocorridos com cidadãos europeus. É muito mais claro que a inferioridade deles é sim despertada por agentes externos e por serem discriminados como cidadãos de segunda categoria.

Quem eram os Irmãos Cherif e Saïd Kouachi, acusados do atentado ao Charlie Hebdo, antes de virarem assassinos e joguetes na mão desses loucos? Os dois eram filhos de argelinos criados num orfanato que viviam num bairro pobre de Paris. É muito claro que buscaram com a religião preencher algo que faltava em suas vidas pessoais e em sociedade quando forma recrutados pela Al Qaeda.

De acordo com um antigo advogado que os conheceu anos antes, "Eles só queriam ser bons muçulmanos". Por quê? Ora, o que mais eles poderiam ser? 

 A Família os abandonou. O Estado os desamparou. A Sociedade os marginalizou. Quantas pessoas você não conhece em situação semelhante que gostam de usar a frase: "Estou só com Deus nesse mundo".  Eles não nasceram psicopatas como muitos na mídia tentam propagar. Segundo relatos de testemunhas, eles enxergavam na Mesquita uma família. [veja aqui] Mas o triste fato é que se tornaram assassinos sanguinários. E a realidade é que pessoas comuns podem se transformar em assassinos sanguinários.



Esse é o principal problema que eu vejo nas críticas as religiões. Quase sempre acontece de se atirar em algo e acertar outro alvo completamente diferente, e tem ocorrido bastante com humoristas. Porque não cabe aqui o argumento de que você está ironizando líderes religiosos preconceituosos ou opressores. Pois não são eles os atingidos. Quem acaba sendo afetado são as pessoas mais humildes que usam a religião justamente como tábua de salvação pras mazelas do mundo.

Criticar o lado ruim delas muitas vezes leva junto o lado bom. Por que diziam que "A religião é o ópio do povo"? Porque antigamente o ópio era usado para tratar a dor e amenizá-la. Isso pode gerar um vício e uma alienação? Claro que pode. Mas experimente arrancar isso da pessoa e deixar só a dor e descubra que não é uma solução melhor.

Infelizmente, uma das medidas tomadas na França após o atentado foi a proibição de orações em público. Orações islâmicas. Apenas orações islâmicas em público. Mais uma vez é a utilização da falácia de se criticar as religiões pra se discriminar o diferente. É como se se utilizasse a desculpa de se defender o mais fraco do mais forte quando na verdade você ajudando o mais forte a bater no mais fraco.



Neste ponto convém lembrar mais uma vez que os artistas da Charlie Hebdo eram de Esquerda e defendiam pautas progressistas. Será que eles ficariam felizes com muitas das manifestações feitas após sua morte? Nem precisamos parar pra pensar muito no assunto. Um dos artistas sobreviventes, Bernard Holtrop, o Willem, já se declarou totalmente contrário ao simbolismo ocasionado pelo evento [clique aqui pra ler]. Mais que isso: considera as manifestações são contrárias a todo o trabalho deles:

"Nós vomitamos sobre todas essas pessoas que subitamente dizem ser nossas amigas [...] Temos muitos novos amigos como o papa, a rainha Elizabeth ou Putin, isso relament eme faz rir. Marine Le Pen (presidente do Partido de Extrema Direita Frente Nacional) fica encantada quando os islamistas passam atirar por todo lado [...] Charlie luta contra o simbolismo. As pombas da paz e outras metáforas não são pra nós. [...] É formidável que as pessoas nos apoiem, mas é um contrassenso de tudo que são os desenhos de Charlie. Esta unanimidade é útil a François Hollande (presidente da França) para reunificar a nação. É útil a Marine Le Pen para pedir a pena de morte.  Pode se fazer tudo com o simbolismo, no sentido amplo. Mesmo Putin (presidente da Rússia) poderia concordar com a pomba da paz. Ora, exatamente, com os desenhos de Charlie não se pode fazer qualquer coisa."



O próprio criador da frase, o designer Joachim Roncin, expressou seu descontentamento [leia aqui]:

"Francamente, me dói tudo que aconteceu, com toda essa gente querendo ganhar dinheiro. Especialmente, porque desvaloriza o sentido do slogan"

Bem-vindo ao mundo capitalista onde nós vivemos.

As charges do jornal Charlie Hebdo não tinham intenção de serem um ataque a pessoas como os Irmãos Kouachi, mas em algum ponto eles perderam a capacidade de se comunicar com esse grupo de oprimidos e automaticamente fortaleceram o sistema que oprime, mesmo que tenham feito isso de modo inconsciente.



Mas ainda eram de Esquerda. E representam muito do dilema que a Esquerda enfrenta diante da ascensão da extrema direita em duas frentes diferentes, porém convergentes e o desafio de não se deixar levar pelo extremismo.

Este é um momento de reflexão. Pra se pensar não somente o caminho que estamos trilhando, mas onde ele vai dar.

Dadas as circunstâncias eu só posso dizer que Eu Não Sou Charlie. Também não sou Dieudonné. Não sou Amely Coulibaly e não sou os Irmãos Kouachi. E tão pouco sou Hollande ou Marine le Pen. Num mundo tão intolerante tem sido cada vez mais difícil cada um conseguir ser a si mesmo.

E só posso lamentar que nesse mundo de intolerância de todos os lados que está sendo construído nunca mais haverá um artista como George Wolinski, mas existirão muitos desiludidos que abraçarão o fanatismo como Cherif Koauchi .
 





Um comentário:

Anônimo disse...

Sobre o escandalo na Petrobrás nenhuma linha...

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