terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Batman - O Super-Herói da Mente VII - O Golem Através do Espelho

por
Corto de Malta

"Você é torturador?"

"Sou. Mas não do seu corpo. Da sua Alma." 


Parte I



No final do filme Amnésia (Memento), de Christopher Nolan, o protagonista Leonard diz:

"Todos precisam de Espelhos para se lembrarem de quem são. E eu não sou diferente."



No começo de Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge, todas as identidades que formam o personagem Bruce Wayne \Batman estão presas, ou "congeladas". O verdadeiro Bruce Wayne continua preso naquele Poço do seu Inconsciente e agora parece quase tão velho quanto seu pai de criação, Alfred. Já Batman tornou-se um vilão e abdicou de salvar Gotham City para poder projetar uma lenda maior: Harvey Dent, que morreu como herói para os cidadãos que não sabem que ele viveu para se tornar o Vilão.

O Comissário Gordon varreu o crime organizado da região graças ao impacto causado pelo Ato Dent (Lei Harvey na dublagem do Brasil), acabando definitivamente com as famílias mafiosas. Já a Persona, o Bruce Wayne playboy e falso retirou-se do mundo - pois não havia mais razão para Batman utilizá-la - e seu exílio voluntário gerou mais um lenda urbana em Gotham, do milionário louco que se trancou do mundo dentro da sua mansão como um fantasma.



Sete anos depois da noite em que Harvey Dent morreu começa um processo que fará com que Batman\Bruce reencontre a Si Mesmo (Self) através de personagens que são reflexos dele mesmo. O primeiro encontro é com uma ladra, Selina Kyle, que invade sua casa para roubar suas digitais e, de quebra, levar o Colar de Pérolas de sua mãe, Martha Wayne. O mesmo Colar que Joe Chill tentara roubar quando a matou junto ao seu pai durante a infância de Bruce. O Colar de Martha vai servir como um simbolismo de mudança assim como ocorreu com o Estetoscópio do pai de Bruce, Thomas Wayne, em Batman Begins.

Como verificamos no Capítulo 5, Nolan usou o conceito de Inconsciente Coletivo para transformar Gotham num personagem. Várias das figuras icônicas surgidas dali seria arquétipos que representam a Alma (Psiquê) da cidade.






Quando está investigando Selina Bruce descobre no computador da Batcaverna que seu apelido é A Gata e mais tarde ele ficará sabendo que ela está em busca de uma nova tecnologia chamada Ficha Limpa, com a qual apagaria todas as informações sobre ela, podendo assim recomeçar a vida do zero. Muito semelhante ao plano de deixar de ser Batman e recomeçar que Bruce tinha no filme anterior, O Cavaleiro das Trevas, quando pensou em usar Harvey para substituí-lo. Além disso, ela tem sua própria noção de Justiça, roubando apenas dos ricos. Lembrando que Bruce também seguia sua noção particular de Justiça e foi ela quem o deixou na situação em que se encontrava.

Existe uma profunda identificação de Bruce com Selina. O fato dela ser uma criminosa e ele um combatente do crime é menos relevante do que se imagina, até porque próprio Batman era considerado a anos um criminoso. Moralismos a parte, ela é igual a ele, ao menos na na visão do seu Inconsciente Individual. Colocou uma máscara e lançou-se em uma vida de aventuras, mas com o objetivo de um dia ter uma outra vida de mais paz.



Carl Jung acreditava que a Alma Humana tivesse um lado masculino, que ele chamava de Animus, e um lado feminino, que ele chamava de Anima. Ele baseou em parte sua conclusão do ensinamento do Taoismo, que acredita que Yin é o princípio feminino e Yang o princípio masculino, sendo ambos as forças fundamentais do universo.

O Morcego seria o Animus de Gotham e a Gata seria a Anima. Jung pegou o conceito de Sizígia - os opostos - de Heráclito e aplicou especialmente ao par Anima\Animus. Em outras palavras, não sabemos exatamente como Selina chegou ao ponto de tornar-se quem é, mas Bruce reencontrou nela alguém que estava dentro dele mesmo. No caso dela, essa identificação demora mais e só estará completa após ele ver por trás da Máscara, além da Persona. No começo ela imaginava que Batman era um "amigo poderoso" de Bruce.



Selina cumpre a função do Arquétipo do Camaleão, mudando de lado várias vezes. Começa trabalhando para John Dagget para ajudar a tomar as Empresas Wayne, depois é traída por ele e salva pelo Batman dos homens da Liga das Sombras, e então trai o Batman entregando-o ao Bane, sendo vista como aliada por ele, até que mais tarde trai Bane e salva o Batman ajudando a cidade.

A sua mudança vai se dando conforme ela vai vendo através das camadas do personagem Bruce\Batman. Fica nítida sua surpresa quando Bane revela que Bruce Wayne está por baixo da Máscara do Batman. Selina tinha passado a gostar de Bruce na cena do Baile de Máscaras, quando ele pega de volta o Colar de Martha e onde ela percebe que ele não era igual ao ricos hedonistas daquela festa promovida por Miranda Tate. Especialmente por ele ser o único que (aparentemente) não está de máscara. O protagonista também é o único realmente preocupado em dar a personagem a segunda chance que ela tanto deseja, mesmo após ser traído.



Christopher Nolan dá pequenas dicas ao longo de O Cavaleiro das Trevas Ressurge que demonstram a  conexão entre Selina e Bruce. A trajetória que o Colar percorre ao longo do filme e da trilogia é uma delas. Outra, bem menos sutil, é quando o Herói descobre que a Ladra lhe roubou o bilhete do estacionamento ao beijá-lo, quando o manobrista diz:

"Sua mulher levou o seu carro."
Estes confrontos com seu oposto materializados por Selina são os primeiros responsáveis por despertar as identidades adormecidas de Batman e Bruce Wayne.



Parte II

Jung dizia que a pessoa usa Quatro Máscaras ao longo da vida que sinalizam as etapas de nosso progresso individual. Primeiramente a Persona, que Batman aprimorou em Batman Begins, depois a Sombra, que Batman confrontou em O Cavaleiro das Trevas e, ao aceitá-la e seguir adiante, mergulhou na Alma de Gotham. Quando o reencontramos em O Cavaleiro das Trevas Ressurge ele está como o Velho Sábio - a Quarta Máscara - pois canalizou toda sua energia para um centro.

Um dos riscos de chegar neste estágio é que a pessoa se considera um santo, um profeta ou até um mártir. A questão é que Bruce Batman chegou muito rápido a esse nível e é necessário que um outro Velho Sábio lhe lembre que essa não é a vida que ele queria.



Uma das cenas mais fortes da trilogia acontece quando Alfred desabafa com Bruce sobre o que fez nos sete anos em que o patrão percorreu o mundo em Batman Begins. Nolan colocou o mordomo assumindo de vez o compromisso de pai de criação do Herói quando no filme anterior queimou a carta de Rachel Dawes, onde ela dizia que preferia casar com Harvey Dent do que com ele, para poupá-lo do sofrimento dessa frustração.

Alfred fez, em menor proporção, o que o próprio Bruce fez com Gotham. Manteve-o na ignorância alimentando-lhe uma ilusão de felicidade que jamais seria alcançada. Do mesmo modo o Herói acaba percebendo tarde demais que a mentira não salvou Gotham. O fim do crime organizado não acabou com a desigualdade social, que ainda gerava crimes e miséria.


Mas Bruce estava tão alienado que nem sequer sabia que as Empresas Wayne tinham parado de financiar o orfanato da cidade, gerando mais adeptos para a Liga das Sombras entre os órfãos que chegavam a maioridade e buscavam abrigo e trabalho nos esgotos onde Bane e seus homens se escondiam debaixo do nariz de todos. Mais uma vez Bruce deixou a Sombra crescer até que fosse tarde demais.

Na tentativa de dar-lhe uma sacudida o mordomo revela que durante dos sete anos da jornada do Herói para se tornar Batman ficava esperando que ele NÃO voltasse. Nas férias ele ia até um Café em Florença e tinha esperança de ver Bruce ali com mulher, filhos, uma família. Na sua fantasia Bruce nem lhe dirigiria a palavra, porque vê-lo feliz bastaria para Alfred.


"Eu nunca quis que voltasse a Gotham. Eu sabia que tudo o que o senhor encontraria aqui seria dor e sofrimento. E eu queria mais para o senhor. Ainda quero."

Nessa cena acabamos de assistir a um pai dizendo ao filho que preferia nunca mais vê-lo desde que soubesse que ele estava feliz, ainda que ele mesmo não pudesse tomar parte nessa felicidade. É curioso como logo depois disso  ocorre a cena que desperta completamente o Batman, quando o policial John Blake o visita. Ele é um órfão que conheceu Bruce quando era criança e visitou seu orfanato.



Naquela época ele percebeu que Bruce disfarçava sua dor criando a Persona de um rico playboy despreocupado. Como compartilham um vínculo, Blake consegue ver além na Alma (Psiquê), enxergando algo que nem o próprio Alfred - seu pai adotivo -  via e compreendendo porque Bruce nunca conseguiu leva ruma vida normal:

"Não é qualquer um que sabe o que é a sensação de estar com raiva até os ossos. Quero dizer, eles entendem... os pais adotivos... todo mundo entende, por algum tempo... Em seguida, eles querem que a criança com raiva faça algo que ele sabe que não pode fazer: seguir em frente. Então, depois de algum tempo eles param de entender. Eles enviam o garoto irritado de volta. Eu percebi isso tarde demais. Você tem que aprender a esconder a raiva, praticar sorrisos no espelho. É como colocar uma máscara."



Blake havia conversado com o Comissário Gordon sobre a noite em que Harvey Dent morreu, mesma época em que o Batman sumiu e Wayne se exilou na mansão. Não foi tão difícil imaginar quem ele era e depois que os homens de Bane quase mataram Gordon ele decidiu pedir-lhe ajuda. Bruce vai então disfarçado ao hospital falar com Gordon que usa uma frase profundamente enraizada no pensamento junguiano sobre a Sombra para descrever a atual situação:

“Nós ganhamos com base numa mentira e agora o mal ressurge de onde tentamos enterrá-lo.”
É quase uma variação da frase Jung:

"O que não enfrentamos na vida acaba se tornando o nosso destino."



Lembrando que o nome da Ligas das Sombras nas HQs é Liga dos Assassinos. O nome foi modificado e ganhou contornos significativos. Aqui ela retorna após anos de ausência pela morte de seu líder Ra's Al Ghul e tem Bane comandando seus atos. Por causa disso Bruce volta a ser Batman, para desaprovação de Alfred, que preferia que ele agisse apenas como Bruce Wayne. Para ele  não resta dúvida: Batman se tornou a somatização de impulsos suicidas de Bruce.

Tanto que quando ele decide contar a verdade sobre Rachel ter escolhido Harvey e não ele, Alfred também arrependido de sua mentira, onde diz que prefere que Bruce o odeie num último esforço para fazê-lo parar:




"O senhor só vê um final para sua jornada."

Teria Bruce/Batman se transformado num suicida? Não necessariamente. Porém, é evidente seu desinteresse de tudo após os acontecimentos de Batman - O Cavaleiro das Trevas. O Coringa, e indiretamente também Rachel e Alfred, feriram o Herói estilhaçando sua Alma e jogando cada uma de suas Identidades numa espécie de prisão dentro dela. O próprio Bane, ao enfrentá-lo e dar-lhe uma surra, diz a ele:


 "A vitória derrotou você".




"As trevas traíram você porque elas pertencem a mim."

Depois, quando o Vilão o coloca na Prisão da Liga das Sombras, ele observa que Bruce "acolhe a morte. Sua pena deve ser mais severa". Daí decidir torturar a única coisa de valor que lhe resta e pela qual deu tudo o que tinha: Gotham City. Para corroborar mais ainda a ideia de comportamento suicida, Bruce implora ao homem que cuida dele na prisão:

"Me mate por prazer."


Chegou a um ponto em que, pelo Coringa ter virado tudo de cabeça pra baixo no segundo filme, tudo o que Bane a Liga das Sombras fizeram de negativo ao Herói no terceiro filme acaba virando um fator positivo, mesmo que indiretamente. Bane apenas terminou o que o Coringa e o Duas Caras deixaram pela metade. Como ele diz, quebrou não apenas o corpo de Batman.

Quebrou sua Alma de vez, após anos de agonia da mesma. E nada - nem mesmo a célebre cena da joelhada nas costas adaptada das HQs - poderia ser mais simbólico para demonstrar isso do que o momento em que o Vilão parte ao meio a Máscara do Batman. Assim, os inimigos do Herói fizeram por ele algo que nenhum de seus amigos conseguiu: o fizeram reagir.



Parte III

O próprio Bane é uma figura curiosa em diferentes aspectos. Logo em sua primeira aparição, quando derruba o avião da CIA para resgatar o Dr. Pavel, Bane diz que ninguém se importava com quem ele era até colocar sua máscara. Então, tal como fizemos anteriormente, com o Coringa, vamos chamar a identidade anterior de Bane de Y e então vamos nos concentrar no próprio Bane e na sua relação simbiótica com a personagem Miranda, que revela-se uma Identidade de Talia, a filha de Ra's Al Ghul.

No livro Nossos Deuses São Super-Heróis o autor Christopher Knowles teve uma grande sacada quando percebeu que a maioria dos criadores desses personagens eram Judeus. Jerry Siegel, Joe Shuster, Will Eisner, Stan Lee, Jack Kirby, Joe Simon, Bob Kane, Bill Finger, Jerry Robinson (os três últimos responsáveis pela criação do Batman), é difícil achar um grande nome da Era de Ouro dos Quadrinhos que não fosse Judeu ou descendente direto de imigrantes Judeus.






Baseado nisso, Knowles definiu que os dois grandes arquétipos do Super-Herói seriam o Herói Messias e o Herói Golem. O Heróis Messias seria uma mistura da visão cristã do Messias - ou seja, Jesus Cristo - que obviamente teve certo impacto nesses artistas que viviam nos EUA do começo do século XX, com a visão judaica do Messias, que teria menos a ver com a noção de Sacrifício e mais a ver com o conceito de um Salvador.

O Messias dos Quadrinhos é um Herói que tem a Nobreza de um Rei, mas é guiado pelo altruísmo com a "Plebe". Superman, Homem-Aranha, Capitão Marvel, Poderoso Thor, Gavião Negro, Capitão América e Surfista Preateado seriam exemplos deste modelo de personagem. Já os Heróis Golem estão diretamente ligados à figura do Monstro de mesmo nome.

Na lenda judaica o Golem é uma criatura mística criado por um rabino, que molda o ser na argila (o material muda dependendo da versão da lenda), escreve a palavra Emeth (Verdade) em sua testa e lhe "Sopra a Vida" usando a magia da Cabala. A criatura tinha a função de ajudar os judeus contra seus inimigos, mas por vezes tornava-se perigosa para seus próprios mestres.

O exemplo mais conhecido de como o Mito do Golem foi apreendido na nossa cultura é a imortal história de Frankenstein, onde até mesmo o nome do criador se confunde com o da criatura. Numa história em quadrinhos chamada Golem of Gotham de Peter Milligan e Jim Aparo, Batman enfrenta uma versão original do monstro, além de ter um inimigo clássico, o Cara de Barro, diretamente inspirado no Golem.



Nas HQs algo semelhante ocorre com este arquétipo. Os Heróis que o representam são em suas Identidades Secretas pessoas feridas na Alma e frágeis emocionalmente, que criam um "monstro" através de uma nova Identidade para lidar com o mundo externo. Monstro esse que muitas vezes sai do controle. O período foi fértil para gerar Heróis Gólens como o Sombra, Espectro, Coisa, Homem de Ferro, Demolidor, Wolverine, Hulk e, claro, o Batman. O Herói Golem também é considerado um Anti-Herói por alguns.

O que ocorreu com esses personagens, notavelmente mais com o Batman, é que com o passar do tempo eles foram incorporando elementos do Herói Messias. A trilogia de Christopher Nolan trata dos dois aspectos do personagem, tanto da criança ferida que gera um monstro para enfrentar o mundo quanto do Herói altruísta disposto a se sacrificar por esse mesmo mundo. Bane seria um dos reflexos de Batman, mais especificamente o reflexo do Golem. De monstro heroico que protegia Talia no Poço a um falso Messias salvador da cidade.



Tudo o que Bane faz ou tenta fazer quando governa Gotham é aquilo que Batman poderia ter feito se Bruce tivesse seguido os planos de Ra's Al Ghul. Mas, a exemplo do Coringa que não é mais X, Bane não é mais Y. E embora, quando Bruce esteja no Poço alimente uma ilusão de que Bane era o verdadeiro filho de Ra's que quando criança fez a escalada, ele vai descobrir depois da pior forma possível que estava errado.


Parte IV

Lembrando que em Batman Begins víamos o estabelecimento das três Identidades do protagonista. Bruce Wayne verdadeiro, Bruce Wayne falso e Batman. A cena final do primeiro filme mostrava o Batman virando a carta do Coringa, o que simbolizava uma inversão do ponto de vista narrativo, de Bruce/Batman para o mundo (Gotham).



Em O Cavaleiro das Trevas, Batman, Coringa e Duas Caras formavam um só personagem do ponto de vista de Gotham e na última cena Batman vira o rosto do Duas Caras para ele voltar a ser Harvey Dent, invertendo novamente o ponto de vista, que volta a ser de Bruce/Batman em relação ao mundo. Por isso a "revolução" causada por Bane em Gotham não é abordada como ponto principal e sim como Bruce a enxerga preso no Poço. Até porque tudo aquilo foi feito por causa dele

Desse modo vemos novamente as três Identidades do filme original em foco. Mas há algo diferente desta vez. Um reflexo que surgiu durante a jornada -  ou melhor, TRÊS reflexos - e que provavelmente não vimos porque estávamos ocupados olhando do ponto de vista errado, como o próprio Herói, que só compreende o que está havendo nos minutos finais de O Cavaleiro das Trevas Ressurge. Talia, Bane e Miranda são três Identidades que formam o MESMO PERSONAGEM.



Pode soar estranho, mas é algo mais comum do que se supõe no Cinema de Nolan. Em O Grande Truque a Identidade do mágico Alfred Borden era dividida tanto na sua vida pessoal quanto profissional por dois irmãos gêmeos para assim ele "estar em dois lugares ao mesmo tempo" durante os números de mágica. No resto do tempo eles se revezavam ora como Borden, ora como Fallon, um assistente devidamente caracterizado. No final quando seu rival Robert Angier descobre tudo ele pergunta para o irmão diante dele se ele era o Fallon e este lhe responde:

"Não. Nós dois éramos o Fallon."


A dinâmica e o raciocínio na Trilogia são exatamente iguais. Da mesma forma que um ator, Christian Bale, pode interpretar uma pessoa com várias identidades, ele pode interpretar duas pessoas com uma única identidade como em O Grande Truque. Ou ainda dois atores, Marion Cotillard e Tom Hardy, poem interpretar três identidades de um mesmo personagem, como em O Cavaleiro das Trevas Ressurge. Não era impossível para o público adivinhar a reviravolta final. Pelo contrário. Apesar da surpresa de uns e revolta de outros, tudo se encaixa perfeitamente como um quebra cabeça. O novo esquema apresentado no terceiro filme é o seguinte:



Tália Al Ghul é o Reflexo de Bruce Wayne, o verdadeiro. Ambos são crianças traumatizadas que estiveram presas num Poço na infância, ficaram órfãos de forma trágica e tentam, mais do que vingar, honrar a figura de um pai ausente que morreu a muito tempo. E ambos tem um "amigo poderoso", pois Bruce usa expressão para explicar a Selina sua relação com Batman da mesma maneira que Talia chama Bane de "amigo".



Miranda Tate é o reflexo do Falso Bruce Wayne. Ambos são milionários, filantropos, belos fisicamente,  politicamente corretos, repletos de boas intenções, mas que criam bombas em seus quintais. Em suma, Miranda é a Persona de Talia. Assim como Bruce usava sua Máscara social para se misturar a escroques como Richard Earle, Coleman Reese e John Daggett, Talia usa a sua para se misturar com os aliados de Batman como Lucius Fox, James Gordon e John Blake, sendo até o fim uma sabotadora do movimento de oposição ao regime militarista de Bane.



Bane é um Reflexo de Batman. Também usando um Máscara que lhe dá uma Identidade ao invés de escondê-la, ele também é um produto do rígido treinamento físico e mental da Liga das Sombras, ele se vale de um jogo de intimidação e mistificação da sua figura, utilizando o medo como maior arma. Além disso, Bane se apresenta como um salvador da cidade, quando na verdade é um Golem da Talia que está ali para realizar seu desejo me primeiro lugar. Nota-se uma crítica de Nolan ao próprio Bruce e suas intenções egoístas que o arruinaram no longa metragem anterior.

De fato Bruce é guiado por sentimentos imaturos como a frustração, a inveja e o machismo, que o impedem de enxergar o mundo como ele realmente é até "libertar" todas as suas identidades.



Parte V

A forma como Talia/Miranda consegue chegar até o coração e a cama de Bruce é através do vazio deixado pela morte de Rachel Dawes. Bruce descobre que estava falido devido a um golpe envolvendo John Dagett, as digitais que Selina roubou e o ataque de Bane à Bolsa de Valores. Ao mesmo tempo está sozinho e arrasado, pois Alfred se demitiu após contar-lhe que Rachel não iria se casar com ele.

Miranda - que inclusive usa até o final do longa metragem um penteado e roupas semelhantes aos da Rachel - chega para confortá-lo e segura o porta-retrato de Rachel que o protagonista guarda ao lado do porta-retrato de Thomas e Martha Wayne, tamanha sua importância. Miranda pergunta quem era ela e Bruce fica em silêncio. Então ela pergunta onde estava Alfred. Bruce pega o porta-retrato da mão dela e diz:



"Ele foi embora e levou tudo."

Alfred arrancou de Bruce a fantasia que havia criado com Rachel do mesmo jeito que logo a seguir Bane arrancaria de Gotham a fantasia do Cavaleiro Branco ao contar a verdade sobre o Duas Caras. A razão de Rachel ter um impacto tão profundo em Bruce na trilogia a ponto a ponto de ser o catalisador de sua ascensão e queda como Batman no primeiro e segundo filmes é porque ela é uma das poucas pessoas que faziam parte de sua vida antes dele cair no poço dos morcegos e seus pais serem assassinados.

Bruce depositou em Rachel sua única chance de voltar a ter uma família porque em seu Inconsciente ela fez parte da única família que conheceu. Ele está sofrendo os efeitos de algo que na psicologia é chamado de Imago. É uma imagem formada na infância recheada de valor afetivo que é projetada de maneira distorcida sobre outras pessoas. Na biologia Imago também é o nome dado ao estágio que um inseto atinge na idade adulta após passar por uma metamorfose que define sua sexualidade.



Como recordamos, no Inconsciente de Bruce ele se imaginava como um dos "monstros" que estavam no Poço aonde caiu quando criança e justamente neste momento é a única vez que Nolan mostra explicitamente o protagonista fazendo sexo. Vale ressaltar também o cuidado em deixar a aparência de Miranda semelhante à de Rachel no segundo filme.

Como todos sabemos a atriz que interpretou Rachel em Batman Begins, Katie Holmes, não retornou em O Cavaleiro das Trevas e o papel foi assumido por Maggie Gyllenhaal. O que representa uma ironia pois a personagem muda bastante de atitude um filme pro outro e apenas permanece igual aos olhos do iludido Bruce, que ainda vê nela a mesma menina com quem brincava com pontas de flecha no jardim da Mansão Wayne. Assim como Bruce, Rachel se comprometeu a salvar Gotham, mas nunca ao preço de sua vida pessoal, o que a levou a se afastar de Bruce no fim do primeiro filme,  ainda que prometa esperá-lo terminar sua missão.



Na carta de despedida que Alfred queimou no segundo filme, Rachel quebra a promessa e decide ir atrás de Harvey, decisão que acabaria lhe custando a vida. O fato é que ela não era mais a mesma, seus desejos e necessidades mudaram com o tempo, e então decidiu seguir em frente como Alfred tenta explicar ao seu desolado filho adotivo. A visão congelada no tempo e espaço que Bruce tem dela e de Si Mesmo é uma forma desesperadamente comovente de tentar se agarrar ao único momento de felicidade que teve na vida.

Ao mesmo tempo é também uma visão machista que ele tem do papel das mulheres em sua vida com o eterno estereótipo da mocinha indefesa - causado pelo trauma do assassinato da mãe por Joe Chill. A genialidade de Nolan está em trabalhar esses estereótipos para mostrar como este preconceito se transforma numa arma contra o Herói.



No primeiro filme ele salva a mocinha do Vilão. No segundo filme ele não salva a mocinha e acaba virando um Vilão. No terceiro filme A MOCINHA ERA O VILÃO. Algo que até então podia ser digerido na fantasia imaginada por ele.

Para chegar a essa verdade Bruce/Batman precisou morrer e renascer de dentro do "ventre da mãe terra". O buraco da prisão onde Bane jogou Bruce é do ponto de vista dele - e também do público - idêntico ao buraco onde ele caiu quando era criança.



Em O Poder do Mito mais uma vez Joseph Campbell lembra que nas culturas primitivas as cavernas eram vistas como o Ventre da Mãe Terra, onde se acreditava que era possível vencer a morte renascendo.

Por isso o Médico Cego lhe diz que ele só escaparia da Prisão se voltasse a sentir medo. Para em seu Inconsciente deixar de ser um ser extraordinário e voltar a ser um ser ordinário. Para voltar a ser Humano. Para deixar de ser Batman e voltar a ser Bruce Wayne. Ver a Luz do dia após fugir da prisão foi como um novo parto.



Transformar a escalada de Bruce para fora da Prisão numa metáfora para sair do Poço de sua Alma onde a sua verdadeira Identidade ficou aprisionada desde a infância foi uma ideia original de Nolan e sua equipe que ninguém jamais teve antes com o personagem em nenhuma outra mídia.

Por isso que, após este evento, Bruce já pode aparecer como Batman à Luz do Dia pela primeira vez. Porque ele se libertou das Trevas. Mas Nolan foi além disso.





Em O Cavaleiro das Trevas, o Coringa - que também é um reflexo do Batman - acerta o Morcego com uma barra de ferro e o atira através de um vidro que era uma superfície espelhada. Ou seja, o Palhaço jogou Batman através de um Espelho.

A partir dali, tudo que o Herói fez como Batman acabou tendo um efeito contrário ao que ele queria.
Tentou salvar a família de Gordon, mas matou acidentalmente Harvey Dent. Assumiu a culpa pelos crimes do Duas Caras, para salvar a cidade com a Lenda do Cavaleiro Branco, mas deixou um legado de fascismo e desigualdade social.

Anos depois, em O Cavaleiro das Trevas Ressurge, a primeira vez que vemos uma imagem do protagonista que vemos é através do do reflexo dele na bandeja do prato que Selina lhe trouxe, ou seja, ele está aprisionado dentro do Espelho.



E quando volta a ser Batman salvou os reféns da Bolsa de Valores, mas distraiu a polícia fazendo com que Bane fugisse e levasse Wayne à falência.  E por fim foi derrotado fisicamente pelo próprio Bane.

Até mesmo depois de escapar da Prisão ele sente uma necessidade de salvar Rachel, ou melhor, salvar Miranda. Então, durante a batalha final, Batman derrota Bane e com um chute o atira através da porta de vidro da prefeitura passando em seguida por ali. Ou seja, Batman passou de volta através do Espelho.



Se a Identidade Bruce Wayne estava presa no Fundo do Poço do Inconsciente no início do primeiro filme, a Identidade Batman estava presa do Outro Lado do Espelho do Inconsciente desde o final do segundo filme e ambas foram libertadas no final do terceiro filme.

É só aí que Bruce/Batman enxerga a verdade e descobre que Talia era a filha de Ra's Al Ghul, que fora ela quem escalara o Poço quando criança e não Bane. A seguir Gotham City é salva mais uma vez, Bane e Talia (e obviamente Miranda) morrem. Da mesma forma Batman e Bruce Wayne, o milionário playboy, também morrem.




O Cavaleiro das Trevas ganha uma estátua em sua homenagem e é finalmente reconhecido como Herói. Já Bruce Wayne tem um funeral discreto para os poucos amigos que conheciam sua Identidade Secreta. Mas claro que Batman não "morreu" porque uma lenda não morre como um homem comum.

Por isso, antes de partir, Bruce deixou a Blake - o definitivo Arquétipo do Arauto - instruções para encontrar a Caverna debaixo da Mansão com todo o equipamento, além de consertar o Bat-Sinal no terraço da delegacia, numa espécie de presente de despedida para o Comissário Gordon.




Então Bruce se sente em paz para recomeçar sua vida do zero ao lado de Selina. Jung dizia que a Anima e o Animus seriam mistura de experiências hereditárias com o sexo oposto com aquelas que obtemos ao longo da vida. Verificamos isso porque o símbolo da vida idílica que Bruce tinha com Rachel na infância era a ponta de flecha com que eles brincavam quando ele caiu no poço da caverna dos Morcegos e que ela lhe devolveu de presente em seu aniversário em Batman Begins. E quando é que vemos novamente uma ponta de flecha na trilogia?

No começo de O Cavaleiro das Trevas Ressurge quando Bruce atira uma flecha em Selina ao vê-la pela primeira vez. Era como se Nolan dissesse que ela simboliza uma nova "ponta de flecha" na vida dele. Daí a importância do Colar de Martha, que Selina pegou no início do filme e Bruce tirou dela no Baile de Máscaras. Ao final, o personagem doa todos os seus bens para Gotham e transforma a Mansão Wayne novo orfanato da cidade.



A única coisa que ele pegou e os responsáveis pelo inventário deram falta foi o Colar que dessa vez ele deu de Presente para Selina, como Alfred vê quando os observa no Café em Florença, após recomeçarem uma nova vida.

A primeira vez que o Colar apareceu foi em Batman Begins quando Thomas Wayne mostrou ao filho que ia presentear a esposa com ele. E foi o Colar que atraiu Joe Chill na noite fatídica. Selina era a Alma Gêmea de Bruce e dar-lhe o Colar de sua mãe foi a prova definitiva de que ele exorcizou os demônios de seu passado.



Algumas pessoas poderão sempre achar esta uma alternativa ruim, por mais embasada que seja. Outra das grandes sacadas de Nolan foi que quando Batman tem que revelar sua Identidade para Rachel ou Gordon, nunca diz que é Bruce, e sim fala em código de forma que ele saiba que só eles vão entender. Porque Batman não é Bruce Wayne.

E também não será John Blake - ou mesmo Robin, o verdadeiro nome de Blake numa homenagem aos quadrinhos. Por trás da Máscara do Batman não havia uma pessoa.



Por isso quando Blake está desconsolado no enterro de Bruce dizendo a Gordon que as pessoas nunca iriam saber quem foi o Herói que as salvou o Comissário lhe diz:

"Elas sabem. Foi o Batman."
Ou como Christopher Nolan definiu, um ciclo se encerra enquanto outro começa:



"Para mim, para que essa missão do personagem fosse realizada, ela precisava acabar, então esse é o final para mim e, como eu disse, todos os elementos do final aberto tem relação com o tema de que o Batman não era importante como um homem, ele é mais que isso. Ele é um símbolo e o símbolo vive além do homem."

Porque Batman não é Bruce Wayne. Batman é Gotham City. Ele é a Máscara da Cidade e o Espelho do seu Povo. Batman viverá para Sempre. Longa Vida à Bruce Wayne...



 

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