sexta-feira, 21 de março de 2014

Climatinê: A Caça

por
Corto de Malta


O Ódio não tem Rosto.

Lucas (Mads Mikkelsen) é o típico sujeito comum, querido por sua comunidade amigo das crianças da creche onde trabalha. Seu maior revés foi um casamento frustrado. Enquanto reconstrói sua vida ao lado se sua simpática cachorrinha, tenta reaver a guarda do filho, Marcus (Lasse Fogelstrom).


Porém, seu mundo e o de toda a cidadezinha onde vive viram de cabeça para baixo quando a menina Klara (Annika Wedderkop), filha de Theo (Thomas Bo Larsen), o melhor amigo de Lucas, acusa o protagonista de ter-lhe mostrado suas partes íntimas.

O diretor Thomas Vinterberg deixa claro desde o início não somente a inocência de Lucas, como também os fatores que levaram uma criança imatura como Klara a tomar aquela atitude. E pior. As atitudes igualmente infantis e imaturas dos adultos ao lidar com a acusação.


Da diretora da creche a cada membro da cidade todos apenas julgam o que acham que ocorreu, sem procurar evidências físicas ou psicológicas que atestem aquilo ou conduzam a outro caminho. Colocado de repente em uma situação kafkiana, Lucas mal consegue se defender de acusações que nem ele sabe exatamente quais são.

A partir do momento em que toda a população estabelece que uma criança não mente, não importam as circunstâncias (e ser uma criança de índole dócil e ingênua como Klara reforça essa impressão ilusória) todos que um dia foram amigos do protagonista transformam-se em carrascos em potencial verticalizando um cenário que se transforma na descida de Lucas ao inferno.


Vinterberg inclusive não se mostra interessado em se aprofundar no processo de investigação da polícia ou mesmo no processo mental que leva uma criança a acreditar em tal coisa mesmo que não tenha de fato ocorrido. Talvez o filme perca um pouco com isso, mas como o título já adianta, a intenção principal da obra é demonstrar o mecanismo esse jogo de predador e presa.

Mostrando como uma sociedade pode se canibalizar por causa de sua ignorância e preconceito, ele faz com que outros personagens, como Marcus, Theo e a própria Klara sejam tragados por esse redemoinho de ódio, do qual não conseguem lutam desesperadamente para se livrar.


Particularmente a atuação de Mads Mikkelsen é ao mesmo tempo envolvente e impactante, mas não menos que a das crianças e que a de Thomas Bo Larsen. Seu ambíguo Theo é o que desperta os mais diferentes sentimentos no público, que ao fim acaba compreendendo o dilema dilacerante pelo qual ele passa.

A Caça é sobretudo um filme necessário pro tempo em que vivemos. A trama se passa na Dinamarca, mas poderia ser em qualquer lugar, inclusive no Brasil. A cada ano se somam mais casos de injustiças como o retratado no filme. É claro que casos de crimes como a pedofilia também ocorrem e devem ser punidos. Mas pra cada inocente virando alvo é um criminoso a mais livre. E nosso desejo de valorizar as aparências mais do que a verdade tem sido nossa perdição como sociedade.


Casos como a escola base, o garoto amarrado no poste e tantos outros nos fazem questionar como ainda acontecem crimes tem tanto "cidadão de bem" por aí disposto a fazer "justiça". O problema é sempre o outro, nunca a gente.

Num mundo distorcido como o nosso, com tanto candidato a "herói", as vezes ser herói é apenas prosseguir resolutamente no que se acredita, especialmente se for em si mesmo. Talvez por isso as cenas de maior impacto de A Caça sejam as do supermercado e da igreja.


Onde a lei do mais forte impera, o ódio é como se fosse um vírus e um vício. Porque se propaga facilmente (a coisa mais simples do mundo é odiar algo ou alguém sem motivo) e porque não é fácil se livrar desse sentimento.

Tanto pra quem odeia como pra quem é odiado. Vinterberg faz do filme um belo tratado sobre o ódio, emoldurando esse sentimento numa tensa sequência final, onde conclui que o ódio não tem uma identidade específica.



E por ser tão difícil saber de onde ele vem quando nos damos conta ele já está dentro de nós.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Todos os comentários e críticas são bem vindos desde que acompanhados do devido bom senso.