quarta-feira, 3 de julho de 2013

5 Contos Para Celebrar os 130 Anos de Kafka

por
Corto de Malta


Hoje, 3 de julho, o escritor tcheco Franz Kafka completaria 130 anos de idade se vivo fosse.


O autor mudou a história da Literatura no planeta pois seus textos eram repletos de ousadia sem limites pra época, ao mesmo tempo em que eram dotados de uma amargura e um ceticismo como ninguém havia feito até então.

Kafka expressava através de histórias aparentemente absurdas - um homem que se transforma em inseto do dia pra noite, outro homem que é condenado por um crime que ninguém sabe qual é, ou ainda um outro que tenta em vão alcançar um castelo - os seus próprios sentimentos de opressão e exclusão no mundo, causados principalmente por uma relação extremamente mal resolvida com seu pai e que rendeu um obra de desabafo memorável - Carta ao Pai.


O Google de hoje fez um doodle em homenagem ao escritor e para aquele que talvez seja seu livro mais famoso, A Metamorfose. A maior maior parte dos trabalhos de Kafka só foram conhecidos após sua morte, revelados por seu amigo Max Brod.

Não adianta ficar falando muito sobre Kafka, tão idiossincrático ele era. Então selecionamos 5 histórias curtas e concisas que onde o autor fala por si mesmo:





O Silêncio das Sereias

Prova de que até os meios insuficientes – infantis mesmo – podem servir à salvação:

Para se defender das sereias, Ulisses tapou os ouvidos com cera e se fez amarrar ao mastro. Naturalmente – e desde sempre – todos os viajantes poderiam ter feito coisa semelhante, exceto aqueles a quem as sereias já atraíam à distância; mas era sabido no mundo inteiro que isso não podia ajudar em nada. O canto das sereias penetrava tudo e a paixão dos seduzidos teria rebentado mais que cadeias e mastro. Ulisses porém não pensou nisso, embora talvez tivesse ouvido coisas a esse respeito. Confiou plenamente no punhado de cera e no molho de correntes e, com alegria inocente, foi ao encontro das sereias levando seus pequenos recursos.

As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu silêncio. Apesar de não ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha escapado ao seu canto; mas do silêncio certamente não. Contra o sentimento de ter vencido com as próprias forças e contra a altivez daí resultante – que tudo arrasta consigo – não há na terra o que resista.

E de fato, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras não cantaram, seja porque julgavam que só o silêncio poderia conseguir alguma coisa desse adversário, seja porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses – que não pensava em outra coisa a não ser em cera e correntes – as fez esquecer de todo e qualquer canto.
Ulisses no entanto – se é que se pode exprimir assim – não ouviu o seu silêncio, acreditou que elas cantavam e que só ele estava protegido contra o perigo de escutá-las. Por um instante, viu os movimentos dos pescoços, a respiração funda, os olhos cheios de lágrimas, as bocas semiabertas, mas achou que tudo isso estava relacionado com as árias que soavam inaudíveis em torno dele. 

Logo, porém, tudo deslizou do seu olhar dirigido para a distância, as sereias literalmente desapareceram diante da sua determinação, e quando ele estava no ponto mais próximo delas, já não as levava em conta.
Mas elas – mais belas do que nunca – esticaram o corpo e se contorceram, deixaram o cabelo horripilante voar livre no vento e distenderam as garras sobre os rochedos. Já não queriam seduzir, desejavam apenas capturar, o mais longamente possível, o brilho do grande par de olhos de Ulisses. 

Se as sereias tivessem consciência, teriam sido então aniquiladas. Mas permaneceram assim e só Ulisses escapou delas.
De resto, chegou até nós mais um apêndice. Diz-se que Ulisses era tão astucioso, uma raposa tão ladina, que mesmo a deusa do destino não conseguia devassar seu íntimo. Talvez ele tivesse realmente percebido – embora isso não possa ser captado pela razão humana – que as sereias haviam silenciado e se opôs a elas e aos deuses usando como escudo o jogo de aparências acima descrito.





O Abutre

Era um abutre que me dava grandes bicadas nos pés. Tinha já dilacerado sapatos e meias e penetrava- me a carne. De vez em quando, inquieto, esvoaçava à minha volta e depois regressava à faina. Passava por ali um senhor que observou a cena por momentos e me perguntou depois como eu podia suportar o abutre.

- É que estou sem defesa – respondi. – Ele veio e atacou-me. Claro que tentei lutar, estrangulá-lo mesmo, mas é muito forte, um bicho destes! Ia até saltar-me à cara, por isso preferi sacrificar os pés. 
 Como vê, estão quase despedaçados.
 
- Mas deixar-se torturar dessa maneira! – disse o senhor. – Basta um tiro e pronto!
 
- Acha que sim? – disse eu. – Quer o senhor disparar o tiro?
 
- Certamente – disse o senhor. – É só ir a casa buscar a espingarda. Consegue agüentar meia hora?
 
- Não sei lhe dizer. – respondi.
 
Mas sentindo uma dor pavorosa, acrescentei:
 
- De qualquer modo, vá, peço-lhe.
 
- Bem – disse o senhor. – Vou o mais depressa possível.
 
O abutre escutara tranqüilamente a conversa, fitando-nos alternadamente. Vi então que ele percebera tudo. Elevou-se com um bater de asas e depois, empinando-se para tomar impulso, como um lançador de dardo, enfiou-me o bico pela boca até ao mais profundo do meu ser. Ao cair senti, com que alívio, que o abutre se engolfava impiedosamente nos abismos infinitos do meu sangue.




 Chacais e Árabes
 
Estávamos acampados no oásis. Os companheiros dormiam. Um árabe alto e branco passou por mim; tinha cuidado dos camelos e caminhava até o lugar onde dormia.

Lancei-me de costas na relva; não queria dormir; não conseguia; o uivo lamentoso de um chacal à distância; sentei-me outra vez. E o que estivera tão longe estava de repente perto. Chacais fervilhavam em torno de mim: olhos de ouro fosco brilhando e se extinguindo; corpos esguios como que movidos em ritmo regular e lépido por um chicote.

Um deles veio lá de trás, abriu caminho sob o meu braço, colado a mim como se necessitasse do meu calor, depois ficou à minha frente e, olho no olho, me falou:

- Sou o mais velho dos chacais em toda a redondeza. Estou contente em poder saudá-lo ainda aqui. Já tinha quase perdido a esperança, pois esperamos por você infindável; minha mãe esperou, a mãe dela esperou e assim todas as mães, até chegar à mãe de todos os chacais. Acredite em mim.

- Isso me deixa admirado - disse eu, esquecendo de acender a pilha de lenha que estava preparada para manter com a sua fumaça os chacais à distância.

- É só por acaso que venho do norte distante e estou fazendo uma curta viagem. O que vocês querem, chacais?

Como que encorajados por essa fala talvez demasiado amável eles formaram um círculo mais estreito ao meu redor; todos tinham a respiração curta e resfolegante.

- Sabemos que você vem do norte - começou o mais velho - e é nisso que se funda a nossa esperança. Lá existe a capacidade de compreensão que não se pode encontrar aqui entre os árabes. Dessa fria altivez, você sabe, não pode saltar nenhuma centelha de compreensão. Eles matam animais para comê-los e desprezam a carniça.

- Não fale tão alto - disse eu -, há árabes dormindo perto.

- Você é realmente um estrangeiro - disse o chacal. Se não fosse, saberia que nunca na história do mundo um chacal teve medo de um árabe. Deveríamos ter medo deles? Não é desgraça suficiente termos sido jogados no meio de um povo como esse?

- Pode ser, pode ser - disse eu -, não me atrevo a julgar coisas que estão tão distantes de mim; parece ser uma disputa muito antiga; seguramente está no sangue e talvez por isso só termine com o sangue.

- Você é muito sagaz - disse o velho chacal e todos respiraram mais célere ainda, com os pulmões excitados, embora todos eles estivessem parados; um cheiro amargo, só suportável por momentos com os dentes cerrados, fluía das bocarras abertas. - Você é muito sagaz; o que diz corresponde à nossa velha doutrina. Tiramos-lhes portanto o sangue e a disputa acaba.

- Oh - disse eu com mais veemência do que queria - eles irão se defender; irão abatê-los a tiros aos montes com os seus rifles.

- Você nos interpreta mal - disse ele - segundo a maneira dos homens, que persiste também no norte distante. Sem dúvida nós não iremos matá-los. O Nilo não teria água suficiente para nos purificar. Já diante da mera aparição dos seus corpos vivos partimos às pressas para um ar mais puro, para o deserto, que por essa razão é o nosso lar.

E todos os chacais em volta aos quais nesse ínterim haviam se juntado muitos outros vindo de longe, afundaram as cabeças entre as pernas dianteiras, limpando-as com as patas; era como se quisessem ocultar uma antipatia tão terrível que eu teria preferido escapar do seu círculo com um grande salto.

- Então, o que vocês pretendem fazer? - perguntei e quis me levantar mas não pude; dois animais jovens haviam cravado os dentes com firmeza na parte de trás do meu casaco e da minha camisa; tive de permanecer sentado.

- Eles estão segurando a sua cauda - disse o chacal num tom de esclarecimento e seriedade. - É um testemunho de respeito.

- Eles precisam me soltar! - bradei voltado ora para o velho, ora para os jovens chacais.

- É evidente que eles irão fazê-lo - disse o velho chacal - se você o exige. Mas demora um pouco, pois, seguindo o costume, eles morderam fundo e têm que separar lentamente as mandíbulas. Enquanto isso ouça o nosso pedido.

- O comportamento de vocês não me torna muito receptivo - disse eu.

- Não cobre a nossa falta de jeito - disse e pela primeira vez recorreu à ajuda do tom lamentoso da sua voz natural. - Somos pobres animais, temos apenas mandíbulas; só nos restam as mandíbulas para tudo o que queremos fazer, seja bom, seja mau.

- O que então você quer? - perguntei apenas um pouco abrandando.

- Senhor - exclamou e todos os chacais uivaram; na distância mais remota parecia ser uma melodia. - Senhor, deve acabar com a disputa que divide o mundo em dois. Nossos antepassados descreveram aquele que irá fazê-lo exatamente assim como você é. Precisamos de paz com os árabes, de ar respirável; purificada deles a vista em torno do horizonte; nenhum grito de lamúria de um carneiro que o árabe esfaqueia; todos os animais devem morrer tranquilamente; bebidos por nós sem transtorno até ficarem vazios e limpos até os ossos. Limpeza, nada mais que limpeza é o que nós queremos - e aí todos choraram e soluçaram. - Como suporta viver neste mundo, ó nobre coração, doces entranhas? A sujeira é o branco deles, a sujeira o seu preto; um horror a sua barba; é preciso cuspir à vista do canto dos seus olhos; e se erguem o braço, o inferno se abre na sua axila. Por isso, senhor, por isso, ó caro senhor, com a ajuda dessas mãos que tudo podem, corte-lhes de lado a lado os pescoços com esta tesoura!

E acompanhando uma guinada da sua cabeça apareceu um chacal que trazia num dente canino uma pequena tesoura de costura coberta de ferrugem velha.

- Finalmente a tesoura - e agora basta! - bradou o chefe árabe da nossa caravana que havia se esgueirado contra o vento até nós e nesse momento brandia seu gigantesco chicote.

Todos os chacais se dispersaram o mais rápido possível, mas ficaram a alguma distância, agachados bem perto uns dos outros - tantos, tão juntos e tão parados que pareciam um pequeno radie à cuja volta voassem fogos-fátuos.

- Então o senhor também viu e ouviu este espetáculo disse o árabe e riu com a alegria que a contensão da sua estirpe permitia.

- Você sabe então o que os animais querem? - perguntei.

- Naturalmente, senhor - disse ele. - Isso é conhecido desde há muito tempo; enquanto existirem árabes essa tesoura vai peregrinar pelo deserto e andar conosco até o fim dos nossos dias. Ela é oferecida a todo europeu para realizar a grande obra; todo europeu é justamente aquele que lhes parece convocado para isso. Esses animais têm uma esperança absurda; são loucos, verdadeiros loucos. Por isso nós os amamos; são nossos cães - mais belos que os de vocês. Veja um camelo morreu durante a noite, mandei que o trouxessem para cá.

Quatro carregadores chegaram e atiraram o cadáver diante de nós. Mal ele jazia ali os chacais levantaram suas vozes. Como que puxados irresistivelmente por cordas cada um deles veio se aproximando, com paradas no meio do caminho, o corpo esfregando no chão. Tinham esquecido os árabes, esquecido o ódio, fascinava-os a presença do corpo que exalava um cheiro forte e obliterava tudo. Um deles já se pendurava no pescoço e encontrava a jugular com a primeira mordida. Como uma pequena bomba frenética que quer apagar um incêndio poderoso de uma maneira tão incondicional quanto sem perspectiva, cada músculo do organismo se estirava e contraía no seu lugar. E logo todos se amontoaram sobre o cadáver fazendo o mesmo trabalho.

Então o chefe da caravana vibrou com energia o chicote em todos os sentidos sobre eles. Os chacais ergueram a cabeça, meio ébrios e desmaiados; viram os árabes em pé diante deles; começaram a sentir o chicote com os focinhos; recuaram num salto e correram um trecho para trás. Mas o sangue do camelo já se espalhava em poças e fumegava, o corpo estava bem aberto em vários lugares. Não conseguiram resistir; estavam de novo ali; o chefe árabe ergueu outra vez o chicote; segurei seu braço.

- Tem razão, senhor - disse ele. - Vamos deixá-los no seu ofício; é hora de levantar acampamento. Animais maravilhosos, não é verdade? E como nos odeiam!







Fábula Curta

“Ai de mim!”, disse o rato, ” – o mundo vai ficando dia a dia mais estreito” .

“- Outrora, tão grande era que ganhei medo e corri, corri até que finalmente fiquei contente por ver aparecerem muros de ambos os lados do horizonte, mas estes altos muros correm tão rapidamente um ao encontro do outro que eis-me já no fim do percurso, vendo ao fundo a ratoeira em que irei cair”.

“- Mas o que tens a fazer é mudar de direção”, disse o gato, devorando-o.




Diante da Lei

Diante da Lei está um guarda. Vem um homem do campo e pede para entrar na Lei. Mas o guarda diz-lhe que, por enquanto, não pode autorizar-lhe a entrada. O homem considera e pergunta depois se poderá entrar mais tarde. 

-”É possível” – diz o guarda. -”Mas não agora!”. 

O guarda afasta-se então da porta da Lei, aberta como sempre, e o homem curva-se para olhar lá dentro. Ao ver tal, o guarda ri-se e diz. 

-”Se tanto te atrai, experimenta entrar, apesar da minha proibição. Contudo, repara, sou forte. E ainda assim sou o último dos guardas. De sala para sala estão guardas cada vez mais fortes, de tal modo que não posso sequer suportar o olhar do terceiro depois de mim”.

O homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei havia de ser acessível a toda a gente e sempre, pensa ele. Mas, ao olhar o guarda envolvido no seu casaco forrado de peles, o nariz agudo, a barba à tártaro, longa, delgada e negra, prefere esperar até que lhe seja concedida licença para entrar. O guarda dá-lhe uma banqueta e manda-o sentar ao pé da porta, um pouco desviado. 

Ali fica, dias e anos. Faz diversas diligências para entrar e com as suas súplicas acaba por cansar o guarda. Este faz-lhe, de vez em quando, pequenos interrogatórios, perguntando-lhe pela pátria e por muitas outras coisas, mas são perguntas lançadas com indiferenca, à semelhança dos grandes senhores, no fim, acaba sempre por dizer que não pode ainda deixá-lo entrar.

O homem, que se provera bem para a viagem, emprega todos os meios custosos para subornar o guarda. Esse aceita tudo mas diz sempre: 

-”Aceito apenas para que te convenças que nada omitiste”.
Durante anos seguidos, quase ininterruptamente, o homem observa o guarda. Esquece os outros e aquele afigura ser-lhe o único obstáculo à entrada na Lei. Nos primeiros anos diz mal da sua sorte, em alto e bom som e depois, ao envelhecer, limita-se a resmungar entre dentes. Torna-se infantil e como, ao fim de tanto examinar o guada durante anos lhe conhece até as pulgas das peles que ele veste, pede também às pulgas que o ajudem a demover o guarda. Por fim, enfraquece-lhe a vista e acaba por não saber se está escuro em seu redor ou se os olhos o enganam. Mas ainda apercebe, no meio da escuridão, um clarão que eternamente cintila por sobre a porta da Lei. Agora a morte está próxima.

Antes de morrer, acumulam-se na sua cabeça as experiências de tantos anos, que vão todas culminar numa pergunta que ainda não fez ao guarda. Faz-lhe um pequeno sinal, pois não pode mover o seu corpo já arrefecido. O guarda da porta tem de se inclinar até muito baixo porque a diferença de alturas acentuou-se ainda mais em detrimento do homem do campo. 

-”Que queres tu saber ainda?”, pergunta o guarda. -”És insaciável”.
-”Se todos aspiram a Lei”, disse o homem. -”Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar?”. 

O guarda da porta, apercebendo-se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte: 

-”Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a”.

Um comentário:

Anônimo disse...

simplesmente sensacional

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