Desde que voltou a escrever os roteiros das HQs do Batman, o autor Grant Morrison sacudiu o universo do Homem-Morcego da mesma forma como já fizeram antes com os X-Men e a Liga da Justiça. Muitos taxaram sua fase de totalmente confusa, quando na verdade (e bem mais por culpa da direção editorial da DC que do próprio Morrison) ela faz sentido quando cruzadas as devidas referências e inclusive tem elementos que remontam até aos filmes de Christopher Nolan com o Batman, como a personalidade fragmentada do Cavaleiro das Trevas e sua insana relação de interdependência com o Coringa.
Mas principalmente fazem referência aberta a elementos renegados dos tempos mais lúdicos e infantis das HQs do personagem nos anos 50. Morrison não só os toma como base, mas os incorpora completamente, dando-lhes toda uma dimensão e maturidade dentro da concepção mais séria do universo do Batman.
Para melhor esclarecimento vou me arriscar a ser didático e me concentrar na trama de Batman: Descanse em Paz (Batman - RIP no original) que, ao contrário do que foi declarado pela imprensa na época, não mostra a morte do Batman e sim uma espécie de despedida oficial do personagem de seu próprio gibi, pois os eventos que levaram à suposta morte de Bruce Wayne são na realidade mostrados na minissérie Crise Final, do mesmo Grant Morrison.
Dick Grayson (o primeiro Robin e até pouco tempo o Asa Noturna) assumiu o manto do Morcego, enquanto o jovem Damien (filho de Bruce Wayne com Tália, a herdeira de Ra's Al Ghul) virou o novo Robin, substituindo Tim Drake, que assumiu a identidade de Robin Vermelho (Red Robin).
SPOILER
Existe uma organização secreta chamada Luva Negra, composta de pessoas extremamente ricas, poderosas e amorais que por puro tédio se diverte corrompendo a virtude alheia, entre outras coisinhas, como a produção de uns filmes snuff, e o Batman, em sua cruzada contra o crime, virou alvo deles. Uma curiosidade é que o grupo quase homônimo Mão Negra foi a organização que tramou a morte do Arquiduque Ferdinando, evento que deflagrou a Primeira Guerra Mundial.
Só que, segundo Morrison, os caras vem tramando a sua própria "queda do morcego" a um longo tempo, muito antes de Bane (que aleijou o Batman), Cain (que fez Bruce ir pra cadeia pelo assassinato da namorada), Silêncio (amigo de infância obcecado em se vingar do Morcego) e Máscara Negra (que por um breve período conseguiu ser o "Rei do Cime" de Gotham), ou outro vilão que chegou perto de destruir o Batman.
O líder do Luva Negra é o Dr. Hurt, que aparece na história clássica Robin Morre ao Amanhecer, quando o Batman se trancou numa câmara de isolamento durante dias para um experimento do exército e passou a ter alucinações. Curiosamente, o mesmo plot usado no primeiro episódio da clássica série de TV Além da Imaginação, "Onde Estão Todos?", onde um homem quase enlouquece procurando alguém numa cidade-fantasma e ao acordar descobre que ela só existia em sua imaginação, e que ele era um soldado fazendo um experimento numa câmara de isolamento que simulava o ambiente de uma cápsula espacial.
Voltando ao conteúdo de Robin Morre ao Amanhecer, a intenção verdadeira do Batman era chegar a um estado de imersão tal que ele pudesse conhecer a mesma sensação passada na mente de loucos como o Coringa, pelo menos, de acordo com Grant Morrison. Outra coisa que a história original não mostrava, é que o Dr. Hurt teria aproveitado esse momento de fragilidade e colocado através de sugestão hipnótica uma frase gatilho na cabeça do Batman, Zur En Arr. Essa frase no momento certo "desligaria" tanto a personalidade de Batman quanto a de Bruce Wayne.
Anos depois, o Luva Negra começou a atacar o Morcego no início da atual Fase Morrison no gibi, atacando a ilha de John Mayhew, o fundador do Clube Internacional dos Heróis, um grupo de Batmen de vários países também oriundo de uma HQ da Era de Prata e do qual o Superman também fez parte, embora esse elemento tenha sido desconsiderado por Morrison. Numa história ótima, publicada em duas edições dentro da revista do Batman em nosso país, e que é uma descarada homenagem a um popular livro de mistério de Agatha Cristie, os membros do Clube, presos na Ilha de Mayhew, são assassinados por um indivíduo misterioso, vinculado ao Luva Negra. É O Caso dos 10 Negrinhos no mundo dos super-heróis!
Antes e mesmo depois de escapar dos perigos da ilha, Batman investiga vários policiais que participaram do mesmo experimento do Dr. Hurt e que aparecem vestidos de Batman tocando o terror em Gotham e tentando matá-lo (e o autor escocês aproveita e faz uma salada de referências desde Um Conto de Natal de Charles Dickens até o filme noir O Terceiro Homem), enquanto Bruce Wayne se enamora de uma milionária chamada Jezebel Jet. Cada vez mais envolvido por essa mulher, ele lhe revela sua identidade secreta e lhe mostra a caverna, compartilhando com ela, também órfã, seu trágico passado.
Então no arco Descanse em Paz, o Luva Negra realmente pega pesado soltando informações de que Thomas e Marta Wayne também faziam parte da organização secreta, eram chegados em drogas e orgias, Bruce podia ser filho de Alfred, Thomas matou a esposa e simulou sua morte... entre outras merdas. Tudo para atingir o Homem-Morcego em seu ponto fraco.
Pra piorar o Dr. Hurt dá as caras e a sua cara é a mesma do Dr. Thomas Wayne, e vestido com uma fantasia de morcego, o que também remonta a uma história clássica do passado de Batman onde o pai do Cavaleiro das Trevas prendia um bandido num baile à fantasia, quando o filho ainda era pequeno. Na minha opinião o Silêncio, mesmo não aparecendo em Descanse em Paz, pode tê-lo operado pois, numa história recente, No Coração do Silêncio (que também é excelente e que a Panini junto de Descanse em Paz na revista do Batman), o vilão conseguiu ficar com a cara do próprio Bruce Wayne, embora a cirurgia também poderia ter sido feita por Le Bossu, um cirurgião membro do Luva Negra.
Hurt e todos os homens do Luva Negra, de dentro de um Asilo Arkham absolutamente dominado, atacam e capturam Alfred e Asa Noturna. Só Robin escapa e o Comissário Gordon, que vira alvo de uma série de armadilhas na Mansão Wayne, é salvo por Tália e Damien. O Coringa entra na história porque os sádicos do Luva Negra idolatram o Palhaço... mesmo quando ele começa a matar alguns deles! Por sinal o Coringa dá fortes indícios de que pirou de vez ao bifurcar a própria língua com uma faca, deixando-a com o aspecto de uma cobra. Morrison na realidade deu uma atenção especial ao Coringa, retrabalhando toda a sua suposta insanidade para desenvolver o conceito que ele mesmo lançara na graphic novel Asilo Arkham,, de que o Coringa na verdade uma espécie de Super Sanidade.
Enquanto isso, o Dr. Hurt aciona a tal frase gatilho, Zur En Arr, e sequestra facilmente Jezebel Jet deixando Bruce vagando desmemoriado e alucinado pelas ruas de Gotham conversando com um mendigo que páginas depois ele descobre haver morrido no dia anterior!
Acontece que o Batman SEMPRE tem um plano. Primeiro que ele sempre manteve um caderninho preto aonde narrava o que chamava de "casos inexplicáveis", que equivaleriam às tais histórias lúdicas feitas com o personagem nos anos 50 e, embora quando Robin o lê, passe a crer que Batman/Bruce talvez sempre tenha sido insano, o Morcego de fato usou o caderno como uma ferramenta de lucidez. As histórias da Era de Prata a que o caderno faz referência foram publicadas nos EUA numa edição especial (Batman - The Black Case Book) para facilitar o entendimento de Descanse em Paz. Porém, no Brasil esta edição especial foi ABSURDAMENTE ignorada pela Panini.
A outra medida cautelar de Batman ocorre durante a maxi série 52 (que relatava as famosas cinquenta e duas semanas perdidas do ano pulado no Universo DC após a minissérie Crise Infinita e que teve Morrison como um dos autores) onde o Morcego havia se trancado numa caverna para o ritual do Thorgal, um isolamento ainda maior que o da Câmara do Dr. Hurt. Ali ele teve a idéia de criar uma personalidade de emergência, o Batman de Zur En Arr (A GRANDE SACADA da saga toda!), que é o Batman mother focker porra louca total, armado com um bastão de beisebol, tendo como único equipamento um rádio quebrado, andando com um uniforme vermelho, roxo e amarelo e falando com o Batmirim (que por incrível que pareça é a voz da razão!) enquanto quebra e tortura os inimigos.
Há quem veja essa faceta surpreendente até como crítica ao Batman do Frank Miller, pois o Batman de Zur En Arr bolado por Morrison seria o equivalente ao Batman SEM o Bruce Wayne, lembrando bastante o personagem da HQ O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight Returns) de Miller.
"Eu sou aquilo você ganha quando tira o Bruce de cena!"
Na história de Morrison o personagem chega a arrancar o próprio dente a faca, por este conter um localizador do Luva Negra. Mas convém também lembrar que Zur En Arr naquelas histórias bem antigas e esquecidas do Batman, era um planeta distante onde um de seus habitantes observava o Batman na Terra com uma luneta especial e passava a imitar os seus feitos heróicos.
O Bat-Mirim da história do Morrison explica que esses eventos foram alucinações causadas pelo gás do ataque de um vilão, fazendo também referência à clássica história Não há Esperança no Beco do Crime de Denny O'Neal. Mas como se explica a presença do próprio Batmirim, um duende da quinta dimensão (um personagem similar ao Mxyzptlk, inimigo do Superman) igualmente oriundo das histórias insanas do Morcego dos anos 50?
Ao chegar ao Asilo Arkham para o combate definitivo, o Batman de Zur En Arr inquire o Batmirim, enquanto este se despede (porque não pode entrar no local já que, como eu falei, ele é a voz da razão e Arkham é o berço da loucura), num diálogo memorável:
BATMAN: Afinal, você é mesmo um duende da quinta dimensão ou fruto da minha imaginação?BATMIRIM: A imaginação é a quinta dimensão.
Já dentro do Arkham, o ensandecido herói enfrenta o Coringa e tenta libertar Jezebel, enquanto é envenenado, pois na verdade a vagaba fazia parte do Luva Negra o tempo todo. Mas o mais chocante é o Coringa vendo o Batman sem máscara(!), o que no fim das contas acaba deixando claro que o Palhaço não se importa com a identidade (ou identidades) civis do Morcego e está mais interessado em jogar na cara dele que, apesar de todos os esforços para compreender sua mente, foi exatamente isso que o deixou nessa situação e Batman nem assim conseguiria entendê-lo.
Eles então trocam a roupa do Batman de Zurr-En-Arr por um uniforme mais ortodoxo, colocam-lhe uma camisa de força e o enterram vivo. Mas, como o Coringa previne, o Batman se soltaria e pegaria todos eles. Como o Palhaço diz, numa frase que aponta a extensão da loucura de seu relacionamento com o Cavaleiro das Trevas:
"Toda vez que eu tento sair da caixa de brinquedo dele, ele constrói outra maior ao meu redor."
Confirmando o que ele dissera, quando os membros do Luva Negra vão mexer no tal rádio quebrado do Batman de Zur En Arr, percebem que o mesmo não se tratava só de um delírio do Morcego ao involuntariamente acionam um transmissor que liga um comando no computador da Bat-Caverna, o que termina por trancar todos eles dentro do Arkham.
Nisso, claro, Batman já se desenterrou e, com suas personalidades restabelecidas, revelou que já sabia a tempos que a Jezebel era do Luva Negra e ainda dá uma sacaneada básica na mulher dizendo que roubou a última carta que a mãe dela lhe mandara do corredor da morte (Morrison sabe ser dramático!).
Enquanto isso, o Clube dos Heróis já chegara em Gotham para pegar os outros membros do Luva Negra, que estavam atacando outras partes da cidade, permitindo a Robin ir pro Arkhan, aonde o Asa Noturna conseguiu fugir indiretamente ajudado pelo Coringa, que por sua vez tenta sair do Arkhan arrebentando o portão numa ambulância, mas é atirado de uma ponte por Damien e Alfred, vindo de Batmóvel pro Asilo também, após o mordomo ser resgatado pelo filho do Morcego.
O finalzinho realmente é um tanto clichê. Enquanto Hurt foge de helicóptero com Batman em seu encalço, ameaça revelar pro mundo as supostas verdades sobre a família Wayne se o herói não se unir a eles. É claro que ele recusa.
O médico maluco ainda insiste na história de ser Thomas Wayne, sendo que o Morcego já deduzira que ele era o dublê dos filminhos snuff que o John Mayhew fazia com o Luva Negra e que fora amante da mulher dele. Daí o Hurt diz que na verdade matara esse homem, o dublê, e fica jogando no ar que não era nem uma coisa, nem outra e sim algo maior (talvez o próprio Diabo) com frases do tipo:
"Eu sou o buraco nas coisas. Aquilo que não se encaixa."
A história (in)conclui com a explosão do helicóptero e o desaparecimento de Batman e Hurt, com o Asa Noturna segurando o capa e o capuz que Batman tirara pra subir no helicóptero e a Tália mandando os Morcegos-Humanos que ela comanda matarem a Jezebel.
Como sabemos, o Batman escapou da explosão e passou a viver os eventos relatados em Crise Final e lá sim ele morreu por obra da Sanção Ômega de Darkseid... ou não?
Bem... essa é uma outra história... Descanse em Paz é algo que pode ser medido na frase do sempre sarcástico Coringa no momento em que o Batman de Zur En Arr adentra o Asilo Arkham:
"Essas pessoas muito ricas tiveram um trabalhão pra fazer uma festa de despedida pra você, e você aparece vestido de palhaço?"
É isso... uma festa de despedida para o Batman/Bruce Wayne! Tanto que o fim da história, passado meses depois, já é mostrado Dick Grayson substituindo o velho Batman. Que ele Descanse em Paz... Enfim, é bem provável que o Morrison voltou aabordar os mistérios do Luva Negra e do Dr. Hurt após a Fase atual do Dick como Batman e também bancou O Retorno de Bruce Wayne. Em breve falaremos disso. Estranhamente, Hurt ameaçara jogar o nome da Família Wayne na lama se ele não deixasse de ser Batman e isso coincidiu com o que houve em Crise Final. Mas por que?
Na última página de Descanse em Paz, de uma forma bem sutil, Morrison explica que ZUR-EN-ARR funciona como uma espécie de anagrama com o filme que Bruce viu com os pais na noite em que eles morreram, A MARCA DO ZORRO. Mais especificamente com a última frase que ouviu de seu pai antes de Joe Chill matar a ele e sua mãe... que se alguém como o Zorro existisse no mundo real iria pro Arkham. ZUR EN ARR seria ZORRO IN ARKHAM!... O que demostra a força da inspiração que um personagem de ficção teve na vida de outro.
Isso, aliás, é uma das coisas que sempre achei fascinante no Batman. Ele, no fundo, é como nós: um grande fã de um grande herói.
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