domingo, 14 de agosto de 2011

Especial: O Melhor Pai do Mundo e o Pior Pai do Mundo

por
Corto de Malta


As histórias em quadrinhos, como toda forma de arte, podem ser objeto de reflexão sobre situações da vida real. Por isso os dois personagens abordados aqui e suas respectivas atitudes tem uma repercussão tão forte. Porque, para o Bem e para o Mal, são histórias de pessoas reais.

*AVISO: O texto abaixo contém temas e imagens fortes.



O Melhor Pai do Mundo


Eu considero Keiji Nakazawa uma pessoa abençoada. Se você sabe de quem  estou falando, deve ter agora a certeza de que eu sou maluco. Aos seis anos de idade Keiji Nakazawa presenciou ao vivo a explosão da bomba atômica jogada pelo avião norte-americano Enola Gay na cidade de Hiroshima, no Japão, no fim da Segunda Guerra Mundial, em 6 de agosto de 1945.

Perdeu seu pai, sua mãe e seu irmão no ataque, testemunhou cavalos em chamas cruzando as ruas, pessoas em desespero com cacos de vidro cravados através seus corpos, outras com a pele literalmente derretendo e escorrendo ou se despedaçando enquanto caminhavam, além das incontáveis vítimas que morreram soterradas ou totalmente carbonizadas, a infestação de moscas causado pelo calor excessivo que tomou conta da região nos dias seguintes fazendo com que muitas larvas se proliferassem nos ferimentos das vítimas, vivas ou mortas, a melancólica chuva negra que atingiu a cidade como efeito colateral da radioatividade etc. etc. etc... Enfim, um mural do inferno. Não há necessidade de metáforas, basta descrever o que parece indescritível até lermos a HQ.

Ele sentiu na pele e sofreu na carne a desolação absoluta que reinou na região (Nagasaki também foi atingida por outra bomba atômica dos EUA dias depois), na sua família e no seu país, já que os efeitos do ataque nuclear eram vísiveis tanto nos que sofreram anos a fio com a radiação da bomba quanto em toda a fome, violência e miséria que devastaram tudo ao redor.

Mas Keiji Nakazawa sobreviveu e foi capaz de passar ao mundo a trágica mensagem do que ocorreu naquele agosto de 1945 no gekigá Gen - Pés Descalços, uma das maiores obras-primas das histórias em quadrinhos, onde acompanhamos estes e muitos outros fatos impressionantes através de Gen Nakaoka, o alter-ego do autor.

O pai de Keiji, ou melhor, o pai de Gen é um dos personagens que mais chamam a atenção na história. Um humilde agricultor e artesão, o Sr. Nakaoka ousa erguer sua voz contra a participação do Japão na guerra e contra as atitudes beligerantes do Imperador Hirohito, tornando a ele e toda sua família alvo de discriminação e desconfiança em toda vizinhança.

A maioria das pessoas enxergava num pacifista convicto um antinacionalista traidor da pátria, o que só escancara mais o quanto ele estava certo em apontar para os filhos a insanidade do conflito. A criação que o pai de Gen dá a seus filhos, mesmo que breve, é essencial por ditar toda a tônica da obra. Ele os ensina o valor da luta, da terra, do trabalho, da honra.

Se num dado momento chega a bater nos filhos quando acha que eles pediram esmola na rua, também ensina como era errado o preconceito sofrido pelo vizinho coreano por ele ser coreano, que o inimigo do outro lado da fronteira também era humano, que a guerra só levava ao sofrimento dos mais pobres e, principalmente, a não abaixar a cabeça para aquilo que é errado.


E agia assim mesmo em meio a toda a campanha de lavagem cerebral feita pelo governo do Japão no povo, ensinando-os a odiar um adversário que a maioria desconhecia. O que, justiça seja feita, também era repetido pelo outro lado... e, aliás, é repetido até hoje em todo canto do mundo.

Mesmo quando sua família é perseguida na escola ou no trabalho, sua casa é apedrejada, seu trabalho é sabotado, ele se mantém firme, provando o seu caráter irresoluto, ainda que enfrentando a desaprovação de todos, até seu próprio filho mais velho, Koji, que rompe com o pai e se alista para ser um kamikaze e tentar "salvar a honra" de sua família, atitude essa que viria a repensar mais tarde após se dar conta através da história de um colega que não havia nenhum glamour em morrer estupidamente, deixando desamparada sua família.

Não dá pra esquecer também como,logo depois da briga, Koji se dirige ao trem solitário e de repente tem uma grande surpresa com o que vê pela janela: seu pai. Mesmo não concordando com o filho o Sr. Nakaoka tinha ido para a estação se despedir dele.

Noutra das cenas mais marcantes da trama, Akira, outro irmão de Gen que havia sido mandado para um tipo de acampamento juvenil afastado da cidade, foge de lá, não suportando mais as condições do local. Ao voltar para casa dos Nakaoka em Hiroshima, acusa a família de tê-lo mandado para longe para não terem mais uma boca pra alimentar.

Ouvindo isso, seu pai, furioso, retruca dizendo que no acampamento ele teria comida garantida e não teria que se refugiar nos abrigos anti-bombas a cada alarme de ataque aéreo.

A contragosto, Akira retorna ao acampamento. Dias depois o Enola Gay atira sua maldição sobre Hiroshima, mostrando da forma mais implacável como havia sabedoria em tudo o que dizia o senhor Nakaoka, já que nem mesmo um prisioneiro norte-americano vizinho da família de Gen escapou do trágico destino dos habitantes da cidade.

Gen e sua mãe grávida veêm impotentes seu pai, seu irmão mais novo Shinji e sua irmã Eiko soterrados nos escombros de sua casa que se transformou numa armadilha mortal devido ao fogo que rapidamente se alastrava.

Nessa situação infernal, o Sr. Nakaoka tem uma atitude que retrata bem o perfil daquele homem.
Percebendo que não poderia se salvar e nem aos filhos presos, ele chama a atenção da mulher para o fato de que sua obrigação de mãe não havia terminado e que ela devia cuidar do filho que esperava e dos outros três e clama a Gen que tire a mãe dali, fazendo com que ele se comprometa a cuidar dela e da irmãzinha que iria nascer.

Somente graças a isso, Gen afastou a mãe de perto do incêndio, do pranto da irmã e dos gritos de socorro do irmão... fazendo ele mesmo o parto dela em meio aquele pandemônio nas ruas.


E quem leu Gen Pés Descalços (que está sendo relançado pela Conrad)  sabe que esse foi apenas o começo do martírio daquela família e daquela gente. Keiji Nakazawa passou ainda criança por horrores inomináveis que nenhum ser humano deveria passar, mas se suportou tudo isso foi porque em ao menos uma coisa ele foi abençoado. Em ter tido o pai que teve.




O Pior Pai do Mundo

"Não vou fingir que o papai não me fudeu." diz Clarissa
Tomei conhecimento da história de Clarissa através de alguns comentários no twitter da Larissa Palmieri. Depois vi com meus próprios olhos do que se tratava no Blog do Amer, que com certeza traçou uma análise muito melhor no texto dele que qualquer uma que eu faça a seguir.

Clarissa é um comics publicado na internet criado por Jason Youngbluth sobre uma menina de seis anos que é estuprada pelo pai. Todas as noites.

O autor criou a personagem e sua desajustada família em 1999 e esporadicamente revisita Clarissa e sua desventurada existência. Ciente do abuso infantil sofrido pela garotinha nas mãos do próprio pai, seus irmãos e sua mãe... CULPAM ELA POR ISSO!

O principal motivo parece ser o fato de que Clarissa, em atitude corajosa pra sua idade, não está disposta a se submeter. Em uma das histórias mais perturbadoras criadas por Youngbluth, seus irmãos e sua mãe criam um clima de pressão terrível no café da manhã para forçá-la a não tocar num assunto tão incômodo.


A mãe aparenta ter entrado num estado de alienação total permeado por comportamentos compulsivos na sua rotina de dona-de-casa, onde quer acreditar que o que o marido faz com a própria filha é um deslize tolerável, que ela não deve se queixar, dando a entender que não se repetirá... mas sempre se repete. Em uma das histórias vemos ela nervosamente presenteando a filha com um bicho de pelúcia, que a menina jogará fora após receber a visita do pai de noite... assim como faz com todos os bichos de pelúcia que ganha da mãe como espécie de "compensação"... todas as noites.

Um dos irmãos se sente incomodado com tudo isso e parece enxergar como única válvula de escape hostilizar Clarissa, como se ela fosse responsável por trazer uma nuvem negra para as cabeças de toda a família. Já o outro irmão é afligido demais pelo medo para se mobilizar e torna-se apático perante tudo.

O pai parece agir "normalmente", mas fica indignado pelo fato da filha não conseguir manter a mesma pose de naturalidade, como se em sua cabeça perturbada ela devesse isso a ele. Todo o psicológico daquela casa é tão concretamente ilustrado que, por mais que seja doentio, não há como duvidar do quanto soa real.

Clarissa é uma criança de seis anos que mora um monstro que a encurrala e a machuca de forma desumana todas as noites, ela não tem praonde fugir, nem com quem desabafar, nem como extravazar seu sofrimento.

Ainda por cima, é pressionada para não se queixar. Isso a tornou numa menina inquieta, indócil, triste, solitária e cabisbaixa. Uma criança que esfrega seu próprio corpo infantil no banho com tanta força para se limpar como se assim pudesse resgatar um pouco da sua auto estima.

E uma criança com medo. Muito medo. Toda a tensão concentrada na sua jovem mente alimentada pela penosa presença do pai faz com que numa cena ela vomite o café da manhã diante dele.

Sob o olhar de ódio do pai, que enxerga naquilo uma afronta pessoal, Clarissa chega a recolher os restos e tentar comer o próprio vômito para em vão procurar controlar a ira do monstro. Youngbluth cria muitas cenas fortes como esta e outras mais sutis, repletas de metáforas, mas nunca cai na vulgaridade. Se a HQ é perturbadora é porque pedofilia é algo perturbador, assim com o desenho é cuidadosamente feito para causar estranheza e despertar incômodo.

Clarissa é propositalmente desenhada como uma menina feia porque sua vida é horrorosa. Assim como Keiji Nakazawa usa um traço mais limpo e simples para retratar uma monstruosidade escancarada que consome toda uma cidade, Jason Youngbluth recorre a um desenho mais estiloso para trazer a tona uma monstruosidade oculta sob a fachada de uma família perfeita.

Cada autor usa as ferramentas adequadas a cada HQ para expressar seu inconformismo.

Cada história de Clarissa é mais melancólica que a outra e parece não haver saída para uma inocente refém de um psicopata que trata a própria filha como uma porra de um brinquedo que comprou numa sex shop. Se tiver interesse, e estômago pra isso, pode encontrar aqui as histórias com a personagem.




Conclusão

Obviamente não existe nenhuma semelhança entre o pai de Gen em Gen Pés- Pés Descalços e o pai de Clarissa. A não ser por duas coisas.


Ambos são personagens de histórias em quadrinhos que tem um caráter profundo de denúncia social para alertar o ser humano das atrocidades cometidas pelo próprio ser humano contra seus semelhantes. E também pela proximidade fatídica com o mundo real. O pai de Gen é baseado no pai de Keiji Nakazawa e o pai de Clarissa, senão é baseado em uma pessoa específica, encontra vertentes em vários casos reais de pais que viraram monstros ou que nem sequer foram pais de verdade um dia.

Mas fora isso, o que mais há são diferenças. E uma delas, em particular, é bem gritante.


Enquanto em Gen - Pés Descalços a sociedade marginalizava e maltratava o Sr. Nakaoka e sua família por ele ser um pacifista que dava suporte moral e dignidade aos filhos, nas histórias de Clarissa o seu pai abusivo e pervertido é visto pela sociedade como um tradicional chefe de família politicamente correto. E não me interessa se é a sociedade japonesa, norte-americana, do Brasil ou do Pólo Norte, de 1945 ou da semana passada. É uma sociedade feita por pessoas. Pessoas que julgam os outros. E julgam muito mal, diga-se de passagem.

A Arte, seja a Nona ou qualquer outra, tem uma função de comprometimento com o público. Em parte essa função consiste nesse tipo de alerta para todos nós. Por mais clichê que seja dizer que as aparências enganam... o que mais eu poderia dizer?

Também não é o mais banal dos clichês vermos num herói um vilão e vermos num vilão um herói? Não é assim tanto na mecânica dos quadrinhos quanto na superficialidade da vida?

O mundo é cheio de contrastes e as pessoas cismam em enfrentar um mundo chocante e cruel armados apenas de hipocrisia, que envenena e destrói quaisquer boas intenções que de fato tiveram algum dia.

Porque a questão aqui não é mudar o mundo. É não se permitir ser mudado pelo mundo. Isso é explícito em diversos momentos dessas e de tantas outras HQs,  nessas e em outras realidades que nos rodeiam...

 Seja na professora de Clarissa que se recusa a admitir o que está havendo com ela em casa e encarar o pedido de socorro da garota através de seus desenhos feitos no colégio... seja no piloto do Enola Gay, que batizou assim o avião (que transportou a morte e a herança nuclear para milhões de  seres humanos) porque esse era o nome da sua mãe. Era uma homenagem.

Se eu pudesse falar com Clarissa, com todas as Clarissas do mundo, gostaria que elas ouvissem um recado dado através do coração por Gen (que significa Raíz em japonês), o filho de um pai de verdade:

"O trigo pisoteado produz raízes fortes que se encravam na terra e permitem que ele cresça alto e resistente, capaz de suportar geadas, vento e neve... Até o momento de produzir espigas grandes e robustas. O trigo germinado durante o inverno, desponta no solo, quebrando os cristais de gelo. Então é pisado várias e várias vezes. [...] Seja como o trigo. Quanto mais pisado, mais forte ele cresce."

Então, nesse mês de agosto de 2011 quando se completam 66 anos do holocausto nuclear, quando estiverem celebrando o dia dos Pais espero e creio que estarão todos felizes com suas respectivas famílias. Mas, por favor, reservem um momento de reflexão das suas vidas. Então lembrem-se de Clarissa e não se esqueçam da rosa.






Um comentário:

Anônimo disse...

muito muito muito forte mais reflete muito sobre a vida de agora

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