terça-feira, 1 de março de 2011
Os Dedos do Senhor Moacyr Scliar
Faleceu nesse domingo, 27 de fevereiro de 2011, o escritor gaúcho Moacyr Scliar, um dos grandes autores da Literatura brasileira.
Quem já leu Moacyr Scliar sabe que ele tinha uma sensibilidade única e muito de sua obra era na verdade uma grande reflexão sobre suas origens judaicas e o mundo cristão, e também das universais relações familiares... especialmente entre pai e filho.
Formado em medicina, ganhou várias vezes o Prêmio Jabuti e também o da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) eda Academia Brasileira de Letras. Foi autor de livros como O Centauro no Jardim, Exército de Um Homem Só, Max e Os Felinos, O Tio Que Flutuava, Pai e Filho, Filho e Pai, Aprendendo a Amar- E a Curar, A Colina dos Suspiros e muitos outros. Seus romances Um Sonho do Caroço de Abacate e Sonhos Tropicais chegaram a ser adaptados para o cinema.
Talvez o que eu mais me lembre de Moacyr Scliar era sua sede de falar para os jovens, mesmo os que não eram da sua época, sobre os anseios eesperanças pelas quais toda a juventude passa. Com Moacyr Scliar também vai junto um pouco de uma geração que creseu lendo seus livros, assim como de outros autores da literatura juvenil brasileira que aos poucos vão nos deixando.
Como já disseram que esse Blog anda dando muita notícia de falecimento, vou terminar de um jeito diferente. Com um dos melhores contos de Moacyr Scliar, Os Dedos do Senhor Julio. Mais que um manifesto conta quem julga pelas aparências (e quem já sofreu isso na pele sabe como é), este conto é uma celebração da vida:
OS DEDOS DO SENHOR JULIO
Ontem, depois que eu recebi o prêmio da Academia de Medicina, você perguntou sobre as pessoas que tinham me influenciado nesta opção que fiz pela cirurgia. Aí eu mencionei o teu tio-avô, que era médico do interior e fazia de tudo, e falei de professores da Faculdade, enfim, respondi o que sempre respondo quando me fazem esta pergunta. Mas, devo dizer, não é a verdade, ou ao menos não é a verdade completa. Não é que eu esteja mentindo; eu não mentiria para ninguém, muito menos a você. Mas é que simplesmente deixei de lado algo que me marcou muito, uma coisa em que penso constantemente e sobre a qual gostaria de te falar agora. Inclusive, e principalmente, porque esse episódio ocorreu exatamente quando eu tinha a tua idade, treze anos.
Nós morávamos, como você sabe, em Tinhorões, uma pequena cidade do interior. Próspera: várias fábricas, casas de comércio, bancos. De um deles o meu pai era gerente. Ganhava bem, e levávamos uma vida folgada. Morávamos numa boa casa, não nos faltava nada, e tanto eu como meus dois irmãos estudávamos no Independência, o melhor colégio da cidade, cujas vagas eram disputadíssimas: estudar no Independência dava *status*. Ali estudavam os filhos do prefeito, de empresários, de fazendeiros. Todos se conheciam, todos faziam questão de participar das festas do colégio.
Foi, portanto, uma surpresa a chegada de um novo aluno, um rapaz chamado Alberto. A própria diretora veio apresentá-lo; disse que ele tinha vindo de outra cidade, que ainda não conhecia ninguém, e que esperava que o recebêssemos como a um amigo.
Aquilo era uma coisa que a dona Hortênsia não costumava fazer, mas, como depois constatamos, se justificava. Alberto era magrinho, encurvado -- e muito tímido. Como era tímido aquele rapaz. Mal falava; e quando o fazia, ficava tão vermelho, gaguejava tanto, que dava angústia olhá-lo. Depois de algumas tentativas bem-intencionadas de nos aproximarmos dele, acabamos desistindo. Nos intervalos, ele ficava sozinho, na aula ou no pátio; das brincadeiras não participava. Assim, pouco sabíamos sobre ele.Beatriz, que conhecia a vida de todo o mundo -- seu apelido era "agente secreta" --, descobriu que o pai de Alberto se mudara recentemente para a cidade, depois de ter adquirido um apartamento num edifício de padrão razoável e uma loja, não muito grande, mas bem instalada, na rua principal. Aparentemente Alberto não tinha mãe nem irmãos; nem mesmo parentes, próximos ou distantes. Só aquele pai, que não tardamos a conhecer: vinha quase todos os dias buscar o filho. Os dois eram, aliás, muito parecidos. O senhor Júlio era também de baixa estatura e magro. Contudo, parecia mais expansivo que Alberto. Cumprimentava os professores com um sorriso, fazia comentários sobre o tempo e depois entrava com o filho num velho automóvel, partindo em seguida.
A dupla logo se tornou assunto preferido nas reuniões dos pais. Vários deles se dirigiram à dona Hortênsia querendo saber quem era, afinal, aquele senhor Júlio. A diretora não gostava de ser interpelada; limitou-se a dizer que Alberto mostrara bom desempenho nos testes e que, sendo órfão de mãe e filho único, merecera dela uma atenção especial. Nisto ela estava amparada pelo regimento da escola, que lhe conferia poderes para decidir sobre matrículas nos casos chamados especiais.
Nem todos aceitaram a explicação. Muitos até ficaram aborrecidos com a diretora; achavam que ela estava colocando em risco a reputação do Independência, aceitando como aluno o filho de um homem do qual não se sabia quase nada. O senhor Coimbra, dono de uma revenda de automóveis e amigo de meu pai, mostrava-se particularmente indignado -- em parte talvez porque o senhor Júlio se recusara a adquirir um automóvel dele, o que, segundo Coimbra, era obrigação de qualquer pessoa que se prezasse -- e intrigado:
-- Eu conheço esse homem, César. Tenho certeza de que já o vi em algum lugar. Ou já ouvi falar dele. De todo o modo, algo não me cheira bem, e vou descobrir o que é.
Deixa disso, Coimbra, dizia meu pai, o homem recém chegou à cidade e você vai arranjar problemas para ele.
-- Além disso não é justo para o garoto, que já tem dificuldades de relacionamento.
Meu pai era um homem tolerante, boa-praça. Além disso, ele conhecia o senhor Júlio -- que abrira uma conta no banco -- e não via nada demais no homenzinho. Quieto, sim, mas ser quieto não é crime.
Contudo, o senhor Coimbra não desistiria tão facilmente; quando mais não fosse para honrar a fama de dedo-duro que ele tinha na cidade -- no golpe de 1964 denunciara vários à polícia -- e da qual não apenas não se envergonhava, como até se orgulhava:
-- Quando entro na vida de um sujeito, vou até o fim. E descubro tudo o que quero descobrir.
Para as suas investigações, o senhor Coimbra contava com a ajuda de alguns prestimosos colaboradores: um advogado aposentado, um jornalista do *Notícias*, o único jornal da cidade, e um escrivão da polícia. A eles deu, segundo ficamos sabendo depois, a incumbência de descobrir quem era, afinal, aquele senhor Júlio e pediu-lhes que agissem com a diligência de sempre.
Uma noite -- já eram dez e tanto, e chovia -- a campainha de nossa casa soou com insistência. Minha mãe ergueu os olhos do crochê, alarmada:
-- Quem será?
Meu pai levantou-se da poltrona onde dormitava e foi abrir. Era o senhor Coimbra. Estava encharcado -- mas radiante:
-- Descobri, César! Finalmente, descobri!
Meu pai não estava entendendo nada, mas fez o homem entrar e sentar. O senhor Coimbra mal conseguia conter a excitação:
-- Eu não disse que descobriria quem é aquele homem, César? Pois, descobri!
-- Qual homem? -- Meu pai, com a testa franzida.
-- O homem! Aquele tal Júlio! Olhe aqui.
Tirou do bolso um recorte de jornal e entregou-o a meu pai. Era sem dúvida de um jornal antigo, pois o papel estava até amarelado. Fora recortado da página policial -- a manchete era: "Famoso ladrão finalmente é capturado" -- e estava ilustrado com uma foto.
-- Não reconhece esse homem?
Meu pai foi buscar os óculos, examinou a foto atentamente, e acabou confessando: não, não sabia de quem se tratava.
-- Quem é?
O senhor Coimbra fez uma pausa -- para aumentar o suspense -- e anunciou, deliciado:
-- É ele, César. O tal de Júlio. Esse ladrão aí é ele.
-- Impossível -- murmurou meu pai, incrédulo. E tinha boas razões para duvidar: o homem da foto não se parecia com Júlio.
-- Não parece? -- O senhor Coimbra, sorrindo sempre.
-- Então você desenha aí um bigode, como o que ele usa agora, e uns óculos, e você vai ver que é ele mesmo. Não tem erro, César, o pessoal da polícia que o conheceu me garantiu: o senhor Júlio que você conhece como um lojista respeitável e o famoso "Mão de Seda" -- o ladrão que era capaz de abrir qualquer cofre ou caixa-forte em menos de dez minutos -- são a mesma pessoa.
Meu pai ainda não se recuperara da surpresa. Mas -- e evidentemente irritado pelo ar triunfante do outro -- optou por sorrir, forçado.
-- Bem, mas isto não quer dizer nada. Leio aqui que esse "Mão"..., o senhor Júlio, foi condenado a cinco anos de prisão. O jornal é de dez anos atrás. Portanto, ele já deve ter cumprido a pena. Já acertou as contas com a Justiça.
-- Será? Aqui diz que o dinheiro roubado ao banco não foi recuperado. Será que esse homem está quite com a lei? De onde é que saiu a grana para a loja, para o apartamento -- e para o colégio, César? Não é um colégio barato, esse em que os nossos filhos estudam. Você sabe disso, César. Como é que esse homem paga as mensalidades, sem atrasar uma só, segundo estou informado? Não, César, aí tem coisa. E nós temos de adotar providências.
Não gostei nada do seu tom de voz. Havia uma ameaça, ali, dirigida não só ao senhor Júlio, como ao pobre Alberto. De imediato decidi: se houvesse confusão, estaria do lado deles. Eu não me considerava particular amigo de Alberto -- ninguém o era --, mas aquilo que o senhor Coimbra estava aprontando me parecia uma indignidade, uma sujeira.
-- Ele vai em frente -- suspirou meu pai, que conhecia bem o senhor Coimbra.
Não deu outra: já no dia seguinte, estava todo mundo alvoroçado com a notícia que o senhor Coimbra, ajudado pelo porteiro da escola (ex-funcionário de sua empresa), tinha se encarregado de espalhar. "Você sabe do pai do Alberto? Ele..." "Não diga!" "Pois é."
Por incrível que possa parecer, o único que não se dava conta do que estava acontecendo era Alberto. Continuava com o mesmo olhar triste, distraído de sempre. E para cúmulo da desgraça, tínhamos de trabalhar, em aula, um texto chamado "Os ladrões de sonhos". Os risinhos e os cochichos se sucediam, todo mundo voltando-se para trás, para o pobre Alberto que, cabeça inclinada sobre o caderno, escrevia afanosamente, alheio ao que se passava ao redor. A cena me comoveu e até mesmo me revoltou -- o que eu podia, porém, fazer? Levantar-me, gritando: vamos parar com isto, não é justo o que vocês estão fazendo?
E, contudo, o pior ainda estava por vir. Uma noite meu pai foi chamado ao colégio, para uma reunião rotulada como urgente. Voltou tarde da noite, visivelmente aborrecido. Eu esperava por ele:
-- Você, ainda acordado? -- perguntou, num tom azedo que nele não era habitual. -- Por que não foi dormir? Amanhã você tem colégio.
Olhou-me, suspirou:
-- Está bem, você quer saber o que está se passando.
Pois, o que está se passando é o seguinte: querem mandar embora o teu colega Alberto, sabe? Ou melhor: o Coimbra quer mandá-lo embora.
Eu não podia acreditar no que estava ouvindo.
-- O Alberto? Mandar embora o Alberto? Mas a troco de quê?
-- O Coimbra descobriu que o seu Júlio continua sob investigação, por causa do roubo do banco.
Segundo a Hortênsia, o Júlio se emendou, deixou para trás o passado. Mas o Coimbra insiste, diz que a presença do garoto perturba o ambiente escolar. E mais: que o colégio não pode receber mensalidades de quem talvez esteja pagando com dinheiro roubado.
-- E você acredita nisso?
Ele sacudiu a cabeça, tristemente.
-- Não. Mas há quem acredite, duas ou três pessoas. Muito influentes, infelizmente. O presidente da sociedade mantenedora... O presidente do Conselho de Pais... Está feia a situação.
Ficou um instante em silêncio, o olhar parado.
-- E -- eu, cada vez mais angustiado -- o que é que vão fazer? Já decidiram?
Ele deu de ombros.
-- Nada. Por enquanto, nada. Conseguimos adiar qualquer decisão. Eles ficaram furiosos conosco, o Coimbra e seus amigos. Comigo, especialmente: o Coimbra chegou a dizer que ia tirar o dinheiro do banco, uma espécie de protesto contra mim. E ele é um grande depositante. Mas a mim pouco importa; que faça o que quiser. Só não sei se conseguiremos agüentar a pressão por muito tempo.
Eu ainda queria dizer algo, mas não podia: tinha um nó na garganta. Tudo o que consegui fazer foi abraçá-lo. E ali ficamos, no silêncio só quebrado pelo tique-taque do velho relógio de pêndulo que pertencera a meu bisavô.
-- Está bem -- disse ele, por fim. -- Vai dormir.
As notícias se espalhavam depressa, em nossa pequena cidade. Quando cheguei ao colégio, na manhã seguinte, todo mundo já sabia da reunião.
Mas o clima agora era diferente: de apreensão, de revolta mesmo. Ninguém falava no assunto, não ser de forma reticente, mas sentia-se no ar a tensão. Como é que Alberto vai reagir a isso, eu me perguntava, torcendo para que ele, mais uma vez, não percebesse o que estava acontecendo.
Mas a explosão veio de repente, e de forma brutal.
Foi na aula de História. A professora tinha pedido a Alberto que falasse sobre os costumes da Idade Média.
Ele se pôs de pé. Tinha a fisionomia transtornada. Tentou falar; fez um enorme esforço para isso; mas não conseguiu. De súbito, rompeu em prantos e saiu correndo da aula.
Tão perturbada ficou a professora, que suspendeu a aula: não tenho mais condições de continuar, disse, em voz embargada.
Tão logo ela saiu, o Rodrigo, que era do diretório estudantil, se levantou. Estava indignado:
-- Gente, nós temos que acabar com isto. Vamos fazer uma reunião agora mesmo e combinar um plano de ação.
Todos concordaram. Discutimos, discutimos, mas não chegamos a um acordo. A verdade é que não sabíamos o que fazer, e temíamos o pior.
Temíamos, por exemplo, que Alberto não voltasse mais ao colégio. O que seria uma derrota, para ele próprio e para todos nós. Era injusto o que o Coimbra queria fazer, injusto e absurdo; não podíamos aceitar que ele se sentisse vencedor. E vencedor ele se sentia: continuava mandando cartas e telegramas para várias pessoas importantes, em busca de provas -- e de apoio -- para sua acusação contra o Júlio.
Um dia o Alberto veio me procurar em casa.
Por que o fez, não sei. Acho que, como todo oprimido, todo perseguido, aprendera a identificar, por imperceptíveis sinais, possíveis aliados, ou amigos, ou protetores. Mas na verdade ele não estava buscando proteção ou auxílio; queria simplesmente falar. E falou muito, nós dois sentados no pátio da casa, enquanto a tarde caía e as sombras da noite começavam a se adensar. Falou de sua infância; falou da mãe, que perdera muito cedo; falou dos avós, que o haviam criado, enquanto o pai estava na cadeia. Falou na luta de Júlio para recuperar o filho, falou na amizade entre os dois:
-- Eu sei que para vocês ele é um ladrão, um homem que esteve preso. Para mim, Rui, nada disso importa. Tudo o que sei é que ele é meu pai, e que eu gosto dele da maneira que é. E é um bom homem, Rui, posso te garantir. Um homem que me trata com carinho, um homem alegre, divertido. Você precisava ver as mágicas que ele faz. Ele pega uma moeda -- uma? Duas, três moedas -- e simplesmente faz com que elas desapareçam entre os dedos.
Um pensamento diabólico atravessou a minha cabeça: claro, fazer dinheiro sumir é a especialidade dele. Mas me envergonhei daquilo, me envergonhei mortalmente; cheguei a ficar embaraçado. Ele notou:
-- Desculpe, Rui, eu sei que estou incomodando com esta história toda, mas você vê, eu precisava...
Não agüentou mais: começou a chorar. convulsivamente, os soluços lhe sacudindo o corpo magro. Consolei-o como pude, disse que eu e meu pai faríamos tudo para ajudá-lo, que as coisas terminariam bem.
No que eu, na verdade, não acreditava. Ao contrário, achava que o desfecho seria o pior possível para Alberto (e para nós). Mas então o acaso interveio. No momento exato.
Naquela época, estava sendo inaugurado o novo laboratório da escola. Funcionava numa sala adaptada especialmente para este fim. Estávamos todos excitados, e orgulhosos, com os vários aparelhos e com o equipamento adquirido mediante subscrição entre os pais (a contribuição do senhor Coimbra fora particularmente generosa) e que nos permitiriam, segundo os entusiasmados professores, realizar várias experiências físicas e químicas. O que não podíamos imaginar é que aquele laboratório seria o cenário de uma das cenas mais espantosas acontecidas na escola -- e que acabou repercutindo em todos nós.
Seriam onze e meia, e as aulas estavam para terminar. No laboratório, um grupo de alunos tinha encerrado seu trabalho e guardava o material, quando de súbito uma menina gritou:
-- Gás! Estou sentindo cheiro de gás!
Era gás mesmo: uma mangueira acabara de romper, e ali saía, com um sinistro sibilo, o gás. O professor de química tentou fechar a válvula; não conseguiu e, apavorado com o risco de explosão, perdeu a calma:
-- Para fora, gente! Rápido, para fora!
Todo mundo correu, e a maioria saiu, mas então aconteceu o que podia ser o prenúncio de uma tragédia: a porta se fechou, e três meninas ficaram dentro do laboratório.
A chave estava do lado de dentro, mas era uma fechadura especial, de segurança, as garotas não conseguiam abri-la também por causa da segurança, a porta era de ferro, as janelas gradeadas -- não havia como tirá-las dali. O corredor virou um pandemônio, com alunos e professores chorando e gritando, chamem a polícia, chamem os bombeiros -- um terror.
Atraídos pelos gritos, muitos pais -- que estavam esperando os filhos à saída -- entraram na escola. E entre eles estava o magrinho, encurvado senhor Júlio. Quando soube do que estava se passando, abriu caminho: deixem passar, gente, eu resolvo este assunto.
Chegou junto à porta, abaixou-se, estudou por uns segundos a fechadura. Aí sorriu (coisa estranha, eu nunca tinha visto o homem sorrir). Levantou-se, olhou ao redor, dirigiu-se para a diretora, apontou para um broche que ela usava:
-- Empresta-me um instante o broche, Hortênsia.
Hortênsia? Nunca ninguém tinha falado com a severa diretora com aquela familiaridade. Depois descobriríamos que eles tinham sido namorados, muitos anos antes; à época em que Júlio Toledo deixara um bom emprego movido por aquilo que outros chamariam de irresistível vocação -- no caso, para abrir fechaduras alheias.
Desta vocação, teríamos uma prova. Pegando o broche, Júlio introduziu o alfinete deste na fechadura. Fez-se um tenso silêncio, mal rompido pelos soluços e gemidos das meninas lá dentro. E aí ele pôs-se a trabalhar. De onde eu estava podia vê-lo bem. Fascinavam-me, sobretudo, seus dedos. Dedos longos, de artista. Moviam-se com delicadeza e precisão. Eu sentia que aqueles dedos não estavam apenas realizando uma tarefa. Estavam *falando*. Falando, sim, com a fechadura; interrogando-a, procurando descobrir, de forma sutil e astuta, os seus segredos. A nossa atitude ali, a atitude de todos, professores, alunos, pais, era de respeito, de reverência, até. Vi Alberto; como todos, olhava para o pai; e estava feliz. Feliz como talvez nunca estivera antes.
Um estalido, e a porta se abriu. As garotas saíram correndo lá de dentro, um dos serventes entrou e fechou a válvula. O perigo tendo passado, todos riam à toa, comentando o susto. Não é preciso dizer que daí em diante ninguém mais falou do passado do senhor Júlio. E o Alberto mudou. Tornou-se mais falador, brincava com todo mundo e até colava nas provas. O colégio tinha voltado ao normal.
Terminei o segundo grau, fiz o vestibular, entrei na Faculdade de Medicina, formei-me. Muitas vezes, durante as aulas de cirurgia, eu pensava nos dedos do senhor Júlio. O que eu desejava é que meus dedos se tornassem tão sábios como os dele. Que fossem capazes de dialogar com a intimidade do corpo da mesma forma com que os dedos do senhor Júlio haviam dialogado com a fechadura da porta do laboratório. Era um esforço que valia a pena empreender. Se não para me tornar melhor cirurgião, pelo menos para melhorar como ser humano.
Acho que o consegui. Pelo menos hoje me sinto digno de tua admiração. Mais importante, hoje me sinto digno de tuas perguntas. O que, para um pai, não é pouco.
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3 comentários:
Muito legal esse conto os dedos do ser julio parabens para quem escrevu o conto
Eu gostaria muito de saber um livro em que este texto apareça publicado. Sabe me dizer?
Tem um livro chamado pai e filho
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